Sobre um rapaz que foi cobrar seu pagamento
Fazem uns dois anos e pouco, encontrei com alguns amigos na praça aqui perto de casa. Decidimos almoçar juntos num bar de esquina próximo. No meio da refeição, de repente um rapaz surgiu correndo pela rua lateral, gritando e pedindo ajuda porque estava sendo perseguido. Antes que pudéssemos reagir, surgiram três caras fortes atrás dele, um deles armado.
O bar quase inteiro reagiu instintivamente levantando para fugir se preciso, não sabendo bem do quê. Os caras alcançaram o rapaz, bem mais franzino que eles, o derrubaram no chão e imobilizaram com o joelho no peito. Logo atrás surgiu um carro com mais dois sujeitos. Minha mulher correu para a delegacia próxima na outra rua, enquanto eu e os outros ficávamos de olho para o rapaz não sofrer violência. Logo vieram dois policiais, mas os caras cumprimentaram os policiais amistosamente, entregaram o rapaz, entraram no carro e se foram.
Nós então, sem entender, pagamos a conta às pressas e fomos todos para a delegacia, porque nitidamente havia alguma coisa errada ali. Lá, encontramos o rapaz do lado de dentro do balcão de atendimento, esperando e pudemos finalmente saber do que se tratava.
Ele havia conseguido emprego num posto de gasolina próximo, mas não havia sido pago. Então, depois de algumas promessas não cumpridas, foi ao posto de bicicleta no fim de semana para cobrar do dono, pois era o aniversário da filha e ele queria comprar um bolo para ela. Pois o dono o ameaçou, tentou agredi-lo e, quando o rapaz disse que iria à delegacia dar queixa, partiu a meia dúzia de caras atrás dele, que partiu por sua vez tentando chegar à delegacia antes. O carro não o alcançou antes porque ele pegou uma rua estreita e contramão, onde não dava para entrar. Mas na esquina seguinte o pegaram, bem na nossa frente.
A partir daí criou-se uma situação esdrúxula: o rapaz correra para a delegacia para se proteger de seus perseguidores, mas seus perseguidores o entregaram à polícia; estava na delegacia para prestar queixa, mas a delegada havia pego seus documentos “para averiguação” e não os devolvia — e desconversou quando lhe perguntei por quê. Ele estava sendo tratado como culpado de algo indeterminado. Decidimos ficar ali na delegacia até que ele fosse atendido.
Passaram-se horas. Nitidamente a delegada estava esperando que a gente cansasse e desistisse, mas ficamos. Já anoitecia (lembremos que esta história começou num almoço) quando finalmente ele foi chamado e abriu um B.O. contra o dono do posto. Eu servi de testemunha da agressão contra ele em frente ao bar e dei depoimento também. E ficou marcada uma audiência dali a uns dois meses…
Neste meio tempo, ele (que estava sem celular) fornecera o telefone de casa. Ligamos, falamos com a mãe dele, e quando saíamos da delegacia ele chegou, confirmando tudo o que ele dissera sem que tivessem conversado, inclusive o aniversário da neta. Minha mulher então decidiu comprar um bolo para a menina, Fomos a uma confeitaria próxima, compramos, chamamos um Uber para eles voltarem para casa com o bolo — a bicicleta estava aparentemente perdida, pois ele não teria como voltar ao posto pra buscá-la…
Dois meses depois, encontrei-o e à mãe de novo, na audiência, à qual naturalmente ninguém do posto foi. Ele decidiu retirar a queixa e dar o dito pelo não dito. Na prática, já tinha se arriscado bastante dando a queixa, pois o dono do posto sabia onde ele morava. Compreendi perfeitamente. Não conseguira ainda outro emprego, estava sobrevivendo de biscates. Nos despedimos e nunca mais o vi.
Contada a história inteira, algumas considerações. Primeiro, se você só se convenceu de que o rapaz era o inocente na história lá pela metade do texto, saiba que eu também. Segundo, adicione-se a informação de que o dono do posto era um miliciano da região. E finalmente, tenho certeza de que, ao ler até aqui você estabeleceu uma imagem do rapaz na sua cabeça. Quero dizer que sim, você acertou. Ele era negro.
Eu sou um sujeito de classe média baixa que ascendeu durante a era PT. Sou um agente do racismo estrutural, e mesmo quando tento honestamente agir contra ele, posso fazer muito pouco. Este rapaz provavelmente escapou de ser morto pela presença de espírito de pedir socorro em frente a um bar lotado. Se o carro que o perseguir o tivesse alcançado 50 metros atrás, na rua vazia, possivelmente ele não teria chegado à noite ao aniversário da filha. E mesmo assim eu demorei a me convencer de que os agressores não tinha um motivo qualquer para persegui-lo. Minha mulher, que não é ingênua (para não dizer racista) como eu, foi quem percebeu de que se travava de pronto. O rapaz conseguiu recuperar a bicicleta dias depois, me contou no dia da audiência. Nunca recebeu pelos dias trabalhados.
Conto tudo isso em contraponto aos que insistem em apontar a suposta relevância de um racismo de negros contra brancos, e em memória de Moïse Mugenyi Kabagambe, que não, não é um caso isolado.