Sobre Porta dos Fundos e sedevacantes
Antes de tudo, vou transcrever um trecho de uma entrevista de Eduardo Fauzi, até agora o único identificado no ataque terrorista ao Porta dos Fundos, um integralista que ironicamente fugiu para a Rússia, tendo sido avisado com antecedência da emissão de um mandado de prisão contra ele. Peço que o leitor, antes de prosseguir, pare e identifique a imensa falha lógica no seu raciocínio. Identificando - ou não -, só aí prossiga na leitura.
“Para um crente — fora portanto do paradigma hegemônico — uma blasfêmia sempre será infinitamente pior do que qualquer reação contra ela. Neste paradigma, uma blasfêmia é entendida e sentida como uma ofensa a Deus, que é infinito e perfeito. Qualquer ofensa, por menor que seja, contra Aquele que é infinito, é infinitamente maior do que a maior das ofensas contra um bem finito. Isso é lógica, apenas.
Quando um cristão não tem possibilidade de ser ouvido, quando não há possibilidade de debate, quando não há formas de responder aos ataques feitos à fé, e, sobre tudo, a Deus, além de nos depararmos com autoridades completamente inertes omissas ou até coniventes, que têm o poder de solucionar a questão e cessar a ofensa, mas não o fazem e se recusam a fazer, ou até mesmo defendem os atos criminosos e blasfemos, não resta outra forma do que responder com as próprias mãos.”
Identificou? Parece um pensamento simples e cristalino, mas sua falha está na raiz. Por que diabo (menção evitável mas tentadora) a blasfêmia seria algo pior que outras ações? Ora, por Deus ser infinito, o que torna infinita também a ofensa a ele. Aí está a falha, da aplicação da matemática de infinitos (um ramo que existe mesmo) do nosso amigo. Pois a verdade é exatamente o contrário: diante do infinito, qualquer coisa que não seja infinita torna-se ínfima. Contra um Deus infinito, toda ofensa é insignificante. Um Deus perfeito é impossível de ofender. Este é o ponto de partida falho para a lógica fascista de Fauzi. Porém, a partir de sua ignição equivocada, não é mais possível pará-lo: se a blasfêmia realmente é pior que qualquer outra ação possível, então qualquer ação que evite e combata a blasfêmia, por pior que seja, será sempre uma opção melhor que a blasfêmia. Terrorismo contra a blasfêmia é justificado. Assassinato contra a blasfêmia é justificado. Genocídio contra a blasfêmia é justificado. E assim ele consegue a inversão do paradigma de Dostoiewski: se Deus existe, tudo é permitido.
Este Deus cuja perfeição (diria masculinidade?) é tão frágil que se deixa ofender tão facilmente guarda uma relação direta com uma tendência antiga, porém crescente no catolicismo mais conservador, o sedevacantismo, que consiste basicamente em dizer que o trono de São Pedro está vago porque o ocupante atual é um impostor. Não por acaso, a tendência atual começou com o reformista João XXIII, nos anos 1960, mas havia se acalmado nos períodos de João Paulo II e Bento XVI. Agora, com Francisco, voltaram com tudo. O consenso entre eles é que o Papa é comunista, e portanto não lhe devem respeito. Como em qualquer ideia preconcebida, todo ato do Papa deve servir para confirmar sua tese conspiratória, e um tapa na mão de uma fiel mais exaltada serve então como confirmação de que ele não é uma boa pessoa. Bombas contra blasfêmias sim; tapas contra puxões impertinentes, não.
Há uma confusa rede de relações entre estes fundamentalismos, que no Brasil passa, naturalmente, por Olavo de Carvalho, inspirador de Eduardo Fauzi (um livro do guru foi encontrado em sua casa) e de boa parte dos sedevacantistas. São grupos que se retroalimentam mutuamente na sua inversão moral. Católicos que rejeitam a autoridade papal são, de verta forma, um corolário do pensamento da ofensa a Deus. Pois quem determina o que é a blasfêmia? Quem determina a doutrina? Na onda do ativismo político das Redes Sociais, todo fiel se dá o direito de interpretar as Escrituras como lhe aprouver. O engraçado é que, grosso modo, isto já tem nome, chama-se Protestantismo… Mas o pensamento que concede a qualquer católico a autoridade para afirmar que o Papa é um herege é a mesma que dá a qualquer cristão a autoridade para determinar a morte de hereges que ele identificar.
É claro que este pensamento tem raízes bem mais profundas e muitas outras ligações entre si, assim como a relação entre a intolerância e a defesa de uma pureza teórica, teológica, cultural ou étnica tem mil e uma aplicações. A religião já foi usada antes na implantação do fascismo, e aqui no Brasil o neopentecostalismo tem muito mais vitrine no seu apoio. é inegável que a Igreja Católica segue com bastante força. Esta é uma característica das i inversões feitas para justificar o fascismo, uma lógica impecável cometida sobre uma premissa falsa. Há muitas mais, vamos mapeando-as para melhor combatê- las.