Sobre palhaços e ditadores

Túlio Ceci Villaça
4 min readNov 25, 2023

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Eu queria desenvolver um pouquinho um negócio que me ocorreu outro dia a partir da eleição do Milei, que é como as personas e as performances públicas desses neofascistas atuais têm tanto em comum: Milei, Trump, Bolsonaro, Boris Jonhson, agora esse Geert Wilders na Holanda, são seres que só de olhar para eles se reconhece algo, uma espécie de identificação que vem no gestual, no vocabulário, no modo de falar, nos cabelos — muito nos cabelos. É uma construção que parece absurda, e é, mas é bastante meticulosa. E logo depois de escrever de passagem sobre isso há dias, duas curtidas no post, de amigos meus, me deram o insigth: eles são palhaços.

Ah, mas só agora você notou isso, Túlio? Peraí, deixa eu explicar. Claro que eles são palhaços, tanto que um deles é chamado de Bozo… mas é um buraco mais embaixo, porque ser palhaço é algo muito mais complexo do que parece ao público. As curtidas destes meus dois amigos me esclareceram justamente porque eles são palhaços, de profissão, e com eles já tive oportunidade de aprender um pouco sobre isso.

A construção da persona do palhaço não é um negócio trivial. É muito diverso de falar engraçado ou fingir que tropeça. O palhaço é praticamente um ser à parte da pessoa, a ponto de, por exemplo, ele não ser batizado — ele é que, em certo ponto do processo, escolhe seu nome. Evidentemente, a construção dessa persona parte da própria pessoa, mas — e aí é que está — de certas características específicas dela, de forma quase psicanalítica. Numa palavra, o palhaço de alguém é a faceta que esta pessoa tem de um fracassado, um perdedor. E a construção do palhaço de cada um consiste em lidar com este fracassado em si, expor esta faceta sua ao mundo, rir de si e permitir que todos riam. Como se vê, pode ser um processo muito duro — e muitas vezes terapêutico também.

E aí, quando se olha para esses sujeitos que chegaram ao poder, fica muito claro o que eles são. São todos fracassados. São perdedores que posam continuamente de vencedores. Ah, mas o Trump é milhardário. Amigo, isso não é vencer, até porque ele é herdeiro. Ele é um trapaceiro fenomenal nos negócios e já faliu diversas vezes, dando calotes fenomenais e fraudando contabilidade. Sim, é milionário, mas não é de dinheiro que eu estou falando. Já Bolsonaro e Milei, basta olhar suas biografias — são pilantras de formas diversas, mitômanos absolutos, e nunca realizaram nada de positivo em suas vidas. O Boris é um pouco diferente, mas a impressão que tenho é que ele emula este personagem de forma mais sutil, sabendo dos ganhos políticos disso.

E aí vem o pulo do gato, o plot twist: eles se tornam palhaços públicos, grandes palhaços, apresentam suas faces mais patéticas — e com isso conquistam o grande público, ao se comunicarem diretamente com os fracassados de todo o país, de todo o mundo. Nada de racional: comunicação emocional na veia, identificação não admitida — ou admitida, mas não como perdedores, porque, ao se revelarem perdedores, eles viram o jogo e vencem as eleições! Não é uma questão de se vitimizar, ao contrário: trata-se de ostentar orgulhosamente o seu ridículo e, com isso, transformar este ridículo em motivo de orgulho. Uma dialética surpreendentemente sofisticada.

E aí, numa sociedade capitalista em que os vencedores são cultuados e poucos podem vencer, o surgimento de um perdedor que vence por ser perdedor se torna a grande novidade. A esquerda, que combate as desigualdades, perde seu discurso com esta inversão, e para as pessoas, este perdedor/ganhador parece estar fazendo uma denúncia muito mais eficaz destas desigualdades, já que ele as encarna em si, em sua persona. Quem pode superá-lo? No Brasil, temos a sorte de ter alguém: Lula, que efetivamente superou a desigualdade e encarna esta superação em si de forma muito mais consistente que Bolsonaro. Mas Lula é um só. Em outros lugares, a resposta é pífia. Biden? Massa? São os representantes de tudo o que deve ser derrotado, e mesmo nós, de esquerda, sabemos disso e os apoiamos quase a contragosto. Para a maioria da população, não resta dúvida.

Conclusão do testamento: a persona pública da maioria dos novos líderes neofascistas do mundo é a de palhaços pervertidos — e digo pervertidos porque o uso que fazem dela é muito diverso dos palhaços, mas com uma coisa em comum: eles sabem que são o espetáculo, e usam isso para distrair enquanto destroem tudo à volta. A forma como lidam com seus gigantescos ressentimentos é se vingar do mundo enquanto riem, à moda do Coringa. E eles sabem que, enquanto conseguirem se manter no centro das atenções, ninguém poderá detê-los. Esta é a sua maior arma.

E sequer se pode dizer que isso seja muito original. Mussolini era um palhaço muito próximo dos atuais, e Hitler foi um fracassado a vida toda, até como pintor. Não se pode dizer que seja grande novidade. E que nós sigamos sem saber bem como escapar desta performance, não sermos hipnotizados e capturados por ela, é ao mesmo tempo espantoso e desalentador, porque é sinal de que podemos ter ainda dias muito difíceis no mundo, enquanto os palhaços fascistas, como o Ditador de Chaplin (que assinalou exata e sublimemente a ligação entre eles) brincam com o globo terrestre até ele estourar em suas mãos.

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