Sobre o Roger

Túlio Ceci Villaça
4 min readJun 10, 2023

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Eu nem sou um fã do Pink Floyd ou do Roger Waters, embora reconheça sua importância. A fase mais conceitual da banda, sob a batuta dele, gerou alguns dos álbuns mais reconhecidos da história do rock, um deles um libelo contra toda forma de autoritarismo. Este álbum tem sido a base do show que Roger apresenta há décadas.

Não sou absolutamente contra rever e descobrir o teor racista ou fascista em obras de arte, por mais que às vezes possa ser duro admitir. Mas é assustador assistir a polêmica sobre o Roger e a acusação de apologia ao nazismo por ele usar um figurino de oficial da SS no show teatralizado que faz. É como acusar os atores que já fizeram papeis semelhantes em filmes que condenavam o nazismo. Uma descontextualização completa.

Já vi diversas pessoas sustentarem que há diversas provas documentais do antissemitismo do Roger. Nenhuma delas conseguiu citar exemplos claros. Há duas evidências apresentadas: a colocação de uma estrela de David no porco cenográfico usado no show e a menção a Anne Frank como assassinada por um governo autoritário junto com o nome de Shireen Abu Akleh, jornalista palestina assassinada pelas forças militares de Israel.

Muito bem, quanto à primeira: o porco voador do cenário vem da capa do álbum do Pink Floyd Animals — que tem três faixa com “pigs” no título. Roger passou a imprimir no porco voador de seu cenário inúmeros símbolos e mensagens, anti-autoritaristas. Em certo momento, dez anos atrás, colocou nele os símbolos de diversas religiões, incluindo a estrela de David, a cruz, o crescente e símbolos budistas e hinduistas. O significado era evidente, ele criticava o uso mercantilista de todas as religiões. Ainda assim, a associação do judaismo com o porco, animal imundo para eles, era particularmente ofensiva e gerou protestos justos. Roger retirou o símbolo. Isso foi em 2013.

Já a menção a Anee Frank e a jornalista palestina é recente, e outra vez num contexto mais amplo que a comparação entre as duas. Roger projetou no palco o nome de inúmeras pessoas assassinadas por regimes de força — uma delas foi Marielle. Outra vez a interpretação não é difícil. Evidentemente, as mortes de cada pessoa se deu em circunstâncias diversas. É absurdo querer compará-las. Mas é possível e necessário condenar igualmente seus assassinatos e as organizações responsáveis, sejam governos, máfias ou milícias.

Mas então, se é tudo tão evidente, o que causou esta sensação toda, a ponto de a polícia alemã investigar o Roger? Vejo dois elementos principais, um deles objetivo e outro subjetivo. Um deles é o lobby da extrema direita judaica, que hoje ocupa o governo de Israel e recrudesce diariamente a repressão ao Estado Palestino, realizando na prática um genocídio a fogo lento. É de interesse deste grupo que toda acusação ao governo de Israel seja confundida com antissemitismo, levando mesmo opositores do governo a reagirem. Obviamente, existe antissemitismo em diversas partes, inclusive em forças de esquerda, o que deve ser combatido. Mas estabelecer esta confusão favorece o fascismo e é uma de suas armas. Então, se o Roger é um acerbo crítico do governo de Israel, interessa apontá-lo como nazista e desqualificá-lo.

Mas isso é pouco. Não sou conspiracionista a ponto de acreditar que o lobby da extrema direita judaica tenha o poder de mudar a opinião pública mundial, já experimentamos este tipo de crença com consequências funestas. O que tendo a concluir, a contragosto, é que estamos aos poucos perdendo, como sociedade, nossa capacidade de interpretação de uma obra de arte, de compreensão do simbólico, em suma, de nossa subjetividade.

Outra vez, detesto esta perspectiva apocalíptica. Mas a questão é que vivemos um processo de redução da comunicação via redes sociais, em que o debate aprofundado é cada vez mais impossibilitado, aliado a um esforço da extrema direita mundial no sentido da inversão de polos dos debates, um terraplanismo exportado para todo e qualquer assunto, em que não há o menos pudor em alegar o absoluto contrário da verdade, consciente de que o vigor da alegação suprirá a credibilidade necessária. Em tempos de pós-verdade, afirmar que quem combate o racismo é o racista, que quem combate o nazismo é o nazista etc. é comum como areia na praia.

E o resultado é que, coletivamente, não conseguimos avaliar minimamente algo tão simples quanto um uniforme nazista usado para criticar o nazismo. Em vez disso, costumamos compartilhar emocionalmente coisas que nos horrorizam exclamando que horror!, sem lembrarmos que há pessoas que não enxergam o que consideramos evidente, e com isso fazermos de graça o trabalho de espalhar o horror.

Não tenho dúvidas de que nada acontecerá ao Roger em termos criminais. Ainda não estamos no ponto em que uma gritaria coletiva fará com que o combate ao nazismo seja considerado nazista, após uma leitura mínima. Mas um caso desses deve servir como um alerta. Estamos retornando coletivamente, como civilização, a um estado de literalidade, à generalização do terraplanismo a todos os pontos do conhecimento. O caso do Roger é o de menos, é só um sintoma. Quanto a isso, espero sinceramente estar errado.

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