Sobre “o que a esquerda precisa”

Túlio Ceci Villaça
3 min readNov 5, 2024

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Acho que a única coisa em que todos concordam é que as ideias atuais de boa parte da esquerda perderam a conexão com o que grande parte da população quer — o teorema de Mano Brown, tão criticado seis anos atrás. A impressão que tenho é que as pessoas que pensam a esquerda (para não fazer o generalismo “a esquerda”) simplesmente não conseguem se ajustar às demandas atuais da população, e em vez disso tentam moldá-la a parâmetros de décadas atrás.

Quando os moto-boys recusam a CLT e sindicatos, a única resposta é chamá-los de alienados. Seria bem mais fácil se houvesse um grupo de operários grande para fazer greves como os que fundaram o PT, mas não há mais. O pensamento de esquerda que serviu para isso não tem respostas para a pregação do empreendedorismo além de dizer “vocês não são empreendedores”, ou seja, a pura desqualificação.

Li a entrevista com o Isaac Faria, lider comunitário da periferia de São Paulo que saiu do PT e apoiou o Nunes, e que diz que agora ele tem condições de tocar os projetos dele na comunidade e botar grama sintética no campinho. A reação de muitos na esquerda? Chamar de traidor. E provavelmente se sentem campeões morais depois disso, sem entender nada. Sem sequer entender a importância de um campinho de futebol numa comunidade.

E aí, como é sempre mais fácil combater um inimigo interno que um externo, surge a culpabilização do “identitarismo”, um espantalho inventado para botar no mesmo balaio as lutas por direitos dos negros, das mulheres, dos LGBT+, dos indígenas, de toda e qualquer minoria. De repente a culpa é deles, ou então dos “pobres de direita”, que são burros. Ou os evangélicos, que são robotizados. A culpa é exatamente de quem a esquerda deveria cuidar, gente que precisa ter seus direitos assegurados, conseguir melhores fontes de renda.

Li outra entrevista, esta do Galo, líder dos motoboys, em que ele detona esse conceito de pobre de direita. Está correto. Uma parcela da esquerda não se conforma de as pessoas pensarem hoje diferente de há 50 anos.

Nessa hora lembro do meu pai, que foi empregado a vida toda e tudo o que queria de mim era que eu fosse um profissional liberal, para não ter patrão e não passar pelo que ele passou. Meu pai não era de esquerda, muito pelo contrário. Mas é impressionante para mim como o pensamento do individualismo já estava lá na década de 1970, apenas esperando oportunidade para se desenvolver.

E agora que isso aconteceu, ainda tem gente defendendo as mesmas saídas. Os motoboys são para mim um simbolo disso tudo, um paradigma do precariado. São os que se arrebentam no trânsito e mais precisam do SUS e de proteção. Mas não querem CLT, porque trabalham com várias plataformas. É preciso inventar nocivas formas.

Se a esquerda conseguir chegar nos motoboys, consegue chegar em todos. E digo todos incluindo os chamados identitários, porque aí ela terá conseguido entender que as necessidades são outras, não apenas das questões trabalhistas. E que antes de ser classe as pessoas são simplesmente pessoas. Esta faltando este humanismo na esquerda tradicional, ela que se forjou também no movimento católico.

E para não dizer que não há saídas nem renovação, muitos já apontaram o caso do Rick Azevedo, eleito vereador do Rio por um PSol que não lhe deu nenhum apoio — sintomático — com a plataforma de combater a escala 6x1. Contraditório com os motoboys? Não, complementar. Porque os motoboys não querem trabalhar até estourar, eles querem ser bem pagos para poderem trabalhar menos e irem jogar bola no campinho de grama sintética no fim de semana. E não levarem dura da PM só por serem pretos. E não serem estupradas se forem mulheres. E não serem ameaçados se forem trans. É tão difícil assim?

Como o Rick, tem muita gente fazendo coisas e defendendo pautas importantes. A tão desejada renovação da esquerda está aí, e nem está esperando uma chance, já está cavando. As soluções não são fáceis, mas há uma coisa a ser feita antes de tudo, mudar o olhar sobre a população, e ir ver o que ela quer em vez de ficar tentando adivinhar com parâmetros do século passado. Isso não deveria ser difícil, já que o que esse pessoal mais quer é ser ouvido. É bom começar enquanto é tempo.

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Túlio Ceci Villaça
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