Sobre o nazismo amorfo tupiniquim
A recente demissão do secretário de Cultura por ter explicitado o discurso nazista do governo Bolsonaro ao parafrasear Goebbels foi bastante explorada em termos de discurso. Porém, acho que faltou investigar um pouco o que ela não diz, ou diz pelo avesso: se é evidente que ela explicita este caráter nazista e o tem em comum com o governo, é preciso também deduzir a característica do governo que se diferencia dela (ou da atitude explícita do secretário demitido), e que dificulta a ação contra ele: sua característica nunca inteiramente assumida, entre a troça e a seriedade, em suma, sua comunicação amorfa.
Explico. O governo Bolsonaro tem evidenciadas suas inclinações autoritárias, seu moralismo medieval, suas características de extrema direita, em suma. Porém, em grande parte elas são apresentadas de forma inconsistente ou brincalhona, e muito mais em termos de desconstrução/desqualificação de ideias contrárias que pela afirmação das suas. Desde a campanha a ação dos trolls é feroz e fundamental na divulgação das noções seguidas pelo governo, não apenas no nível mais elementar, mas também no, digamos, mais alto, ou seja, pelas próprias falas do presidente, seus filhos, ministros, e, claro, Olavo de Carvalho. Todos tratam de ironizar, acusar, desmerecer adversários e suas ideias o tempo todo, muito mais que apresentar as suas. O importante é serem sempre estilingue, para que não haja chance de serem vidraça.
O resultado disto é que as ideias não são apresentadas com a mínima consistência para serem discutidas, e mesmo quando são ridicularizadas pela oposição/esquerda, isto tem pouca importância pelo alcance que conseguem — inclusive por meio dos compartilhamentos da própria esquerda. Assim, quando Damares propõe abstinência no Carnaval, a difusão da palavra de ordem “transem” em oposição a ela, por mais galhofeira que seja, parece lhe dar razão. Porém, o mais importante do discurso de Damares, atribuindo a devassidão e o desregramento à esquerda (e por extensão a AIDS e as gravidezes precoces), a desqualificação que ele carrega, este passa batido — e tem alvo certo. E assim as ideias nazistas vão sendo naturalizadas sem chegarem a ser enunciadas, pela ação até mesmo dos que as combatem.
O mesmo se dá em várias outras frentes. O governo poucas vezes se assume em uma direção específica, e frequentemente volta atrás ao fazê-lo. Bolsonaro se equilibra entre ser católico e evangélico, sem ser questionado por nenhum dos grupos — e ao receber ironias da esquerda, só precisa atacar de volta sem responder, até porque os ataques são sem método e parecem ter menos um objetivo estratégico e mais o de marcar posição. Outro exemplo: enquanto o ministro da Educação ataca Paulo Freire e afirma que campi universitários têm plantações extensivas de maconha, não precisa propôr nada. E quando o ENEM é uma catástrofe, ele simplesmente acusa a esquerda de sabotagem, como o patrão já fizera nos incêndios amazônicos, para disfarçar, nos dois casos, a falta absoluta de uma diretriz no lugar da que criticam.
A guerra Cultural do neonazismo tupiniquim funciona enquanto ele é amorfo e assim pode atacar mas não pode ser atacado, como um monstro de gosma de filme, que as balas atravessam enquanto ele sufoca o inimigo. Mas se ele toma qualquer forma definida, imediatamente se torna combatível porque o caráter odioso dele se mostra a alguém que não devia, algum público que se mostrava neutro, algum aliado que se achava a salvo. No instante em que ele cristaliza alguma característica a sério, na mesma hora ele perde algum apoio atingido por esta definição. O caso de Roberto Alvin foi exemplar. Enquanto o fascismo do governo era trollagen, não incomodava ninguém além da esquerda que ele trollava. Mas se é a sério, Israel desce do barco. E assim é em várias frentes, inclusive no meio conservador.
Uma estratégia de comunicação da oposição a este governo precisa ser, portanto, a do rompimento deste equilíbrio delicado, forçando definições da parte dele. Pois a estratégia deste governo neonazista é diversa da organização alemã. O nazismo brasileiro consiste na liberação desordenada de forças de destruição sem ter que se comprometer com elas — como quando em campanha Bolsonaro disse não ter como se responsabilizar pelas ações de seus seguidores que ele na prática incitava. Cada vez que este governo é forçado pelas circunstâncias ou cai na besteira de dizer efetivamente a que veio, ele perde, seja por não saber dizer, seja por dizer e desagradar quem não deveria. Romper a barreira da trollagem e fazer o governo falar a sério é uma linha de ação eficaz contra este nazismo que não ousa dizer seu nome.