Sobre o Lula e a Caixa de Pandora
E Lula não conseguiu ir ao enterro do irmão. Há um bocado de coisa para falar sobre isso, mas meu lead é o seguinte: o quanto a mitificação de Lula e o terror que ele inspira nos atuais donos do poder é retroalimentada pelas ilegalidades seguidas tomadas contra ele - e vice-versa. Quanto mais Lula sofre arbitrariedades que tentam tolhê-lo e impedi-lo de agir politicamente, mais sua imagem de perseguido se firma, mais ele ganha cacife como perseguido político, mais seus perseguidores perdem a razão, e mais precisam tomar outras atitudes como esta. Nosso estabilishment entrou num círculo vicioso com relação a Lula e não sabe mais sair.
A decisão do STF chegou quando o caixão já baixava à sepultura, e antes disso o que houve foi uma chicana de demoras e negativas com as desculpas mais absurdas, como risco de fuga (a PF não confia no seu taco?), e até que a presença de Lula atrapalharia a busca por vítimas de Brumadinho (aparentemente, eles consideram a presença do Lula mais devastadora que um rompimento de barragem). O desencontro de alegações açodadas dá conta do quanto se tinha de mantê-lo na cela de qualquer jeito, mesmo desrespeitando a Constituição - coisa que já se fez algumas vezes no caso dele, desde a divulgação dos grampos que incluíam Dilma. De qualquer forma, a autorização que finalmente chegou nem era de ir ao enterro, mas de levarem o caixão e os familiares a um, digamos, campo neutro, isolado, onde ele os poderia ver. Diante desta complicação imensa e já sem poder se despedir do irmão, Lula desistiu.
Na prática, o que aconteceu foi a criação de um fato consumado pela procrastinação. Não é de hoje que, no caso de Lula, o tempo da justiça se ajusta elasticamente às necessidades que mais o prejudiquem: para condená-lo, toda a pressa, antes que possa ser candidato; para liberar os áudios ilegais, poucas horas, antes que se torne ministro; para avaliar ordens de soltura, a vagareza necessária para que sejam anuladas. O objetivo fundamental é mantê-lo fora de qualquer contato direto com a população, e isto incluiu a totalmente imprevista em lei proibição de dar entrevistas durante a campanha eleitoral. Virtualmente todas as decisões relativas a Lula durante seus processos é e foi política.
Portanto, a afirmação de que ele é um preso político se torna mais inegável a cada uma destas arbitrariedades. O problema é que a situação de preso político de Lula, à medida que é reforçada, dá a ele reiteradamente condições de sustentar seu discurso mesmo calado numa cela - ou principalmente nesta condição - mas qualquer minúscula brecha que se dê a ele fica mais e mais potencializada. Quanto menos ele pode falar, mais passa a valer cada palavra que consiga emitir. E quanto mais preso fica, mais cada mínima concessão dada a ele, ainda que dentro da legalidade e de seus direitos, soa ao público como uma vitória pessoal dele contra seus algozes. É esta a sinuca de bico em que o sistema (não apenas) judiciário se meteu: cada discricionariedade cometida cotra Lula impulsiona ao cometimento de mais e mais discricionariedades, e qualquer recuo torna-se uma derrota. Viola-se a lei seguidamente com o discurso de que segui-la seria, paradoxalmente, ceder a quem se alega que a violou.
No fim das contas, fico pensando que, se o estabilishment tivesse feito uma oposição política a Dilma minimamente leal em vez de um golpe palaciano, é muito possível que hoje tivéssemos um presidente liberal (Alkmin? Dória? Algum outro nome surgido depois?) e não um fascistoide, e Lula seria apenas um político em declínio, com força moral mas sem a mesma popularidade, cobrado pelos erros econômicos da sucessora (afirma-se que ela estava corrigindo a rota e foi impedida. Foi mesmo, mas não é possível saber se as correções dariam certo. Provavelmente a retomada não seria suficiente) e acuado pelas denúncias de corrupção do partido que efetivamente fossem provadas - pois as há. Em vez disso, facínoras como Temer e Aécio decidiram montar nas costas de outro facínora como Eduardo Cunha, justiceiros de toga como Moro autorizaram-se a julgar politicamente e violar a lei contra quem suas convicções apontassem, e o resultado é o país jogado não no socialismo ou no liberalismo, mas no fascismo. Porque assim como a porta aberta da perseguição judicial a Lula não admite recuos, mas apenas exacerbamentos, da mesma forma a ilegalidade do impeachment abriu a Caixa de Pandora para toda forma de abuso disfarçado de legalidade, e a ascensão fascista é apenas o corolário deste processo. Falta dar uma boa espiada no fundo desta caixa. A esperança está lá, mas é preciso alguém ir buscá-la. E o Lula não está em condições no momento.