Sobre o Gleen

Túlio Ceci Villaça
3 min readNov 1, 2020

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Quando a Vaza-Jato começou, houve uma reação dupla da esquerda. Uma parte ateve-se ao conteúdo que era revelado e comemorou a confirmação de crimes que já eram denunciados há tempos e agora eram confessados pelos próprios autores, supostos agentes da lei; e uma outra encarou com desconfiança pelo fato de as revelações virem por meio de um agente estrangeiro e que já manifestara aprovação à Lava-Jato, o Gleen Greenwald.

Fato é que a Vaza-Jato aconteceu independente disso, e os fatos trazidos por ela, mesmo ignorados por parte substancial da Mídia tradicional (exceção feita à Folha. Mesmo a Veja, que anunciou parceria, depois recuou e nunca mais tocou no assunto), hoje são a base tanto factual quanto política para a desmoralização de figuras como Deltan e Moro, e mesmo para a proximidade da anulação do processo contra Lula, que o STF segue enrolando o quanto pode. O ódio devotado contra o Gleen pelas forças bolsonaristas, inventando maluquices como a do Pavão Misterioso e chamando-o de Verdevaldo (típico da quinta séria que eles nunca completaram) é a melhor testemunha do quanto sua atuação foi impecável.

Esta introdução é para falar do rompimento do Gleen com o Intercept. Já li todo tipo de opinião sobre o assunto, desde que ele deu piti (o que o Intercept diz) até os que seguem apoiando-o incondicionalmente. Há o argumento de que o artigo do Gleen era exatamente, isso, um artigo e não uma notícia, sem nenhum fato novo, e portanto a não publicação não caracteriza censura, já que não se está negando informação factual ao leitor. É um argumento respeitável se não levarmos em conta que o Gleen era fundador do site e tinha um acordo de publicação com os editores.

De tudo isso, o que fica são duas constatações simples: primeiro, que realmente há uma denúncia consistente de tráfico de influência do filho do Joe Biden, com a possível cumplicidade do pai, que não foi desmentida por nenhum dos acusados (diferentemente das acusações contra Hillary na última eleição, francamente forjadas); e segundo, que há um acordo silencioso por parte da maior parte da mídia americana no sentido de não dar destaque ou mesmo silenciar sobre estas acusações, para impedir que beneficiem Trump. E é aí que, finalmente, chegamos ao cerne de uma discussão necessária: este é o papel da imprensa?

E é aí que eu chego a uma conclusão definitiva: não sei. A lenda da imprensa imparcial não me convence, mas o fato de os jornais em sua maioria terem assumido o lado de Biden não os dá motivo para esconder denúncias contra ele. Por outro lado, a instrumentalização destas denúncias por quem tem muitas mais contra si é evidente, e esta eleição não é daquelas entre dois polos da democracia, mas sim entre ela e quem tenta solapá-la. Como denunciar Biden a uma semana da eleição deixando claro que ele continua sendo o melhor que pode acontecer nas circunstâncias atuais? Como não apenas apresentar os fatos de forma equilibrada, mas também desautorizar antecipadamente quem os pretenda usar desonestamente a seu favor, como cortina de fumaça para seus próprios crimes muito mais numerosos e graves?

Pois é, não sei. Mas recomendo o longo artigo do Gleen, maior ainda que este meu testamento. Para que, no mínimo, possamos torcer por um vencedor sabendo que ele não é a solução, mas apenas a volta de problemas antigos que ficaram em segundo plano diante de uma ameaça maior, mas que ainda precisam ser resolvidos. Tanto lá quanto aqui.

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Túlio Ceci Villaça
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