Sobre o fascismo não tão sutil

Túlio Ceci Villaça
5 min readJul 19, 2019

--

Em 1933, a Alemanha viva sob a égide do nazismo? Hitler acabara de ser nomeado Chanceler, junto a um ministério conservador que teria a função de controlá-lo - e logo em seguida Hitler o dissolveu. Logo depois, houve o incêndio do Reichtag, provocado pelos nazistas para culpar os comunistas, e assim ao longo do ano Hitler foi eliminando toda oposição, com o discurso de recuperar o país e retomar os valores tradicionais. No fim de 1934, ele já controlava as Forças Armadas e tinha chamado para si as funções legislativas. Então já se tratava de uma ditadura. Mas nos primeiros meses de 1933 a maior parte da população alemã não se sentia absolutamente ameaçada por Hitler, e se perguntados se a Alemanha vivia um regime autoritário, provavelmente achariam absurda a questão.

Sim, é sempre preciso guardar as proporções históricas, e é fato que a ascensão nazista foi meteórica: em poucos meses tudo já estava mudado, já que Hitler não era um trapalhão e sim um psicopata extremamente inteligente. Porém, é preciso deixar muito claro: neste exato momento, o Brasil já vive sob o fascismo. Esta conclusão não pode ser fixar nas aparências de instituições funcionando ou de um Congresso que pareça colocar peias no presidente. O que não faltam são fatores para comprovar.

Qualquer lista destes últimos seis meses seria incompleta: a maioria absoluta dos atos relevantes deste governo foram tomadas por decretos que ignoram ou mesmo atropelam o Legislativo, grande parte deles diminuindo o nível de democracia do país, como no caso da extinção de Conselhos ou da substituição de seus integrantes por militares; há inúmeras iniciativas no sentido de calar vozes divergentes, desde a pressão para demissão de jornalistas que o critiquem até a censura pura e simples (a última ocorre na Ancine); e o setor jurídico do governo, nas mãos de Sérgio Moro, claramente usa a Polícia Federal para intimidar oponentes do governo, incluindo jornalistas, enquanto faz vista grossa para oponentes que são ameaçados de morte (incluindo um parlamentar) e acabam por deixar o país.

E é nesta característica do fascismo que o atual regime é mais fácil de ser identificado. As milícias, sejam digitais ou físicas, aliadas deste governo, e ao menos as primeiras com ligações fáceis de rastrear com o próprio Planalto, estão sendo usadas para linchar reputações, difundir calúnias a granel e ameaçar de morte opositores, incluindo outros parlamentares além dos que já emigraram. Trata-se da mesma rede criada para a eleição, mas agora seu serviço se presta a mais que apenas um resultado de votação, mas tem consequências de vida e de morte. A conformação destas milícias não é igual à das nazistas, mas sua ação tem a mesma função, incluindo o fator não-oficial que impede à primeira vista uma culpabilização das autoridades. Afora isto, não faltam tentativas de responsabilizar a esquerda por ações violentas, desde a facada durante a campanha até a recente e mal explicada conspiração para um atentado - fora a teoria amalucada do Pavão.

Ainda poderia me estender, falar da pregação aberta da intolerância contra minorias, da culpabilização da esquerda por todos os males do país, e mesmo a construção subterrânea de uma rede de apoio entre semi-intelectualizada e mística, que se iniciou via Olavo de Carvalho dentro do Catoliscismo mais conservador e agora vai se desgarrando e estendendo tentáculos - vai por aí afora. Mas acho que já é o suficiente para nos darmos conta de que o regime atual do Brasil é o fascismo. Um fascismo que. conforma assinalou Manuel Castells,se instala de forma mais sutil que o da década de 1930, mas, convenhamos, não tão sutil. E se muitos não o notam, pode ser por estarem hipnotizados pela comunicação fascista como muitos alemães o foram, ou pode ser simplesmente porque, na condição de privilegiados, ainda não fomos atingidos diretamente pelas suas consequências, assim como as famílias alemãs com antepassados arianos só chegaram a ser atingidas bem mais tarde, quando seus filhos começaram a morrer na guerra, mas não foram elas a ir parar nos campos de concentração. E muitos dos que apoiaram inicialmente o regime, achando-se a salvo, mais tarde foram incluídos nas listas de perseguidos e arrependeram-se do apoio dado.

O que me leva a um último ponto, que é a ação da esquerda. Quando Hitler subiu ao poder, havia apenas um contraponto a ele: a bancada de esquerda era tão grande quanto a fascista, mas foi esta que fez um acordo com o Centrão da época para se alçar ao poder, e em seguida esmigalhar a oposição. E isto se deu, entre outros motivos, porque a esquerda estava, como de costume, perdida em lutas intestinas em que se definia quem era verdadeiramente de esquerda, quem era traidor, quem não merecia confiança etc. Mais tarde Churchill, um político conservador, declararia que contra Hitler seria capaz de fazer alianças até com o Diabo, e fez - com Stalin.

Digo isto tanto diante da incapacidade de boa parte da esquerda de somar forças, perdida exatamente nas mesmas discussões e elegendo traidores internos de preferência a se opôr aos externos, quanto diante do arrependimento ou simples mudança de posição de diversos conservadores de vários matizes. É preciso se conscientizar de uma coisa: não se trata mais de luta política tradicional, é o fascismo. Contra o fascismo, não se escolhe companhia, toda companhia é bem vinda. Todos os que levantarem a voz contra o regime são meus aliados.

E isto vale para Ciro, Marina, Boulos, Haddad, Lula, Molon, Eliane Brum, Djamila Ribeiro, Idelber Avelar, Gregório Duvivier, e quem mais vier - não interesse se você não gosta deles, estão do seu lado. E vale para Marco Antônio Villa, Rachel Sheherazade, Arnaldo Jabor, Demetrio Magnoli, Reinaldo Azevedo. Ainda são melhores que Pondés que preferem apoiar obliquamente o regime, sem se comprometerem, apenas passando pano nos conceitos, Constantinos que insistem em criticar ações específicas para elogiar medidas econômicas que lhe interessem, como se o fascismo tivesse algo aproveitável, canalhas absolutos como Mainardis ou mesmo os olavetes, estes sim totalmente mesmerizados pelo pseudofilósofo. São vozes dissonantes do autoritarismo, portanto me interessam.

Arrependidos? Sinceros? Tardios? Não me interessa. Neste instante, são antifascistas como eu. E acreditem, precisamos deles. Depois que o fascismo cair, voltaremos a nos engalfinhar. Hoje, são partigiani, tanto quanto os que sempre estiveram deste lado das fileiras, são trabalhadores da última hora. É com eles que temos de cerrar fileiras. E quem está contra eles agora está abrindo os braços ao fascismo. Desculpem a falta de sutileza, os tempos exigem.

--

--

Túlio Ceci Villaça
Túlio Ceci Villaça

No responses yet