Sobre o discurso do Lula
Ouvi todo o discurso do Lula ao vivo, como cerca de 57 mil pessoas, conforme o YouTube informava na hora. Nem é muita gente, se pensarmos bem. Mas sempre me lembro da história do disco do Velvet Underground, do qual se diz que quase ninguém comprou, mas todos que compraram fundaram suas próprias bandas de rock. (P.S. O discurso foi transmitido em canais pagos jornalísticos e que tais, então o público foi muito mais amplo. Perdi minha metáfora, mas tanto melhor).
O discurso do Lula não teve nada demais, e foi fenomenal. Dizer o evidente hoje é um ato de coragem, e ele tem consciência absoluta disso a ponto de fazer blague sobre o formato da Terra. As pessoas estão precisando ouvir o óbvio, aquele óbvio da canção Um Índio. O discurso do Lula foi fenomenal por, entre outras coisas, olhar para diante e não para trás. Ele falou do que passou apenas para dizer que o importante era o que milhares de famílias estão passando. Ele mal falou de Sérgio Moro, o arrivista travestido de justiceiro que, quando finalmente chegou ao STF, o fez pela porta dos fundos, que sonhou ascender construindo uma escada com degraus de areia. Mal falou de Moro, Moro é passado, há um país para reconstruir.
O que mais me impressiona no discurso do Lula é menos tudo de evidente que ele disse — nada daquilo é novidade, inclusive boa parte ele já pôs em prática — mas o que conseguiu. Conseguiu, pela primeira vez, tirar do fascismo a primazia do discurso. O Gabinete do Ódio está há três dias inativo: parou quando Fachin anulou os processos, não pôde reagir no dia seguinte quando a suspeição do Moro era votada, e permaneceu silencioso durante o discurso. E mesmo neste momento que escrevo, já à noite, não se recuperou. Certamente vai contratacar amanhã, mas Lula o calou por três dias inteiros. Só ele conseguiu isso.
E conseguiu mais: conseguiu pautar o fascismo na direção contrária. O uso repentino de máscaras pela comitiva presidencial só não deu mais bandeira que a tentativa de convencer que Bolsonaro sempre defendeu vacinas — só se for na casa da mãe dele, que aliás tomou a segunda dose da CoronaVac. E o ato falho hilariante do filho, recomendando que a defesa da vacina pelo pai fosse “viralilzada”? Isso é que é nova cepa. Tudo isso é reação ao Lula. Só ele conseguiu isso.
E sabem por que? Porque, de cada dez eleitores brasileiros, ao menos um vota tanto no Lula quanto no Bolsonaro. Porque toda a identificação com a população que Bolsonaro emula desesperadamente com palavrões, pães com leite condensado, idas ao barbeiro filmadas, tudo isso Lula tem real, construída não apenas em dois mandatos, mas na vida pregressa. Se este 11% de eleitores do Bolsonaro se bandear para Lula, ele perde um terço de seu eleitorado. Ele talvez não saiba disso matematicamente, mas ele sente.
Lula não é necessariamente o único que pode vencer Bolsonaro e o fascismo. Na verdade, creio que, qualquer que fosse o nome, se houvesse uma união política mínima em torno dele, seríamos vencedores. Mas não há, e os principais protagonistas do campo progressista não querem que haja. Então a presença do Lula se torna imprescindível, porque em determinados momentos é precisa a voz da autoridade — não do mando, não do autoritarismo, mas de quem autoridade para falar por tudo o que já fez.
Lula tem esta autoridade, e com isso conseguiu o terceiro feito com seu discurso: deu o toque de reunir que faltava contra o fascismo. Certamente vai haver quem não atenda. Mas estes vão ficar para trás. Porque há mais uma coisa evidente de seu discurso, para mim a principal: a prioridade número um é derrotar o fascismo e salvar vidas. E quem não tem esta prioridade não merece ser chamado de democrata. Não é preciso concordar com tudo o que ele disse, por mais que quase tudo seja evidente por si. Mas se você não concorda com o essencial, está do lado errado da História.