Sobre o Cuca
Eu deixei de falar de futebol em redes sociais faz anos, e não vou falar de novo, porque isso não é futebol, ou não deveria ser. Mas a história do caso Cuca é ilustrativa dos problemas não do nosso futebol, mas do país mesmo.
Ontem à noite o time dirigido por ele ganhou a custo, e todos os jogadores foram abraçá-lo. Todos. Todos, sem exceção, decidiram ignorar uma condenação por estupro e apoiar o estuprador. Porém, como não estamos mais em 1987, a pressão pública o fez pedir demissão em seguida, alegando “razões familiares”.
Cuca passou a semana fazendo falsas alegações à imprensa e fugindo do assunto mesmo quando o abordava. Vejamos esta declaração lapidar: “Tenho vaga lembrança de tudo o que aconteceu porque foi há muito tempo. Nessa vaga lembrança que tenho, eu tinha 20 e poucos anos na época. Nós iríamos jogar uma partida, subiu uma menina ao quarto, o quarto era o que eu estava junto com outros jogadores. Era um quarto duplo. Essa foi a minha participação nesse caso. Eu sou totalmente inocente, eu não fiz nada.”
Ou seja, ele mal consegue se lembrar de quantos anos tinha em 87. Sem que seja dada nenhuma informação concreta, temos a impressão de que ele apenas assistiu o estupro, ou até menos que isso. Seria quase crível se não tivesse sido encontrado sêmen dele no exame de corpo de delito da menina. A estratégia de negação do Cuca, convenhamos, em pouco difere da Michele negando e admitindo sem querer ter recebido as joias árabes, ou seu marido dizendo que fez campanha contra as urnas eletrônicas sob efeito de morfina. É a mesmíssima linha de argumentação.
E aí está o busílis. Hoje o futebol, que foi um dos símbolos do Brasil como uma potência global ascendente, é simbólico dos entraves a um pacto civilizacional mínimo, é onde nossas misérias estão à mostra, televisionadas nas tardes de domingo. O fato de, 35 anos depois, a situação do Cuca finalmente ficar insustentável, depois de ele ser campeão tantas vezes (só pelo Atlético Mineiro foram a Libertadores em 2013 e Brasileirão, Copa do Brasil e Campeonato Mineiro em 21, logo ali), é uma mostra de que, aos trancos e barrancos, estamos avançando, e que boa parte de nós não compactua mais com a ideia de que o vencedor pode tudo. Uma noção que serve não apenas para o futebol, mas para o combate ao fascismo.
Então está na hora de decidir. E aí? Somos um país em que o estupro é tolerado e relativizado? Somos um país em que uma parcela da população pode cometer crimes impunemente? Somos um país em que deputados federais podem ameaçar matar e divulgar notícias falsas? Somos um país em que um crime pode ser negado à base de “não me lembro”, “estava sob o efeito de remédios”, “sou um pai de família”, “meus inimigos estão conspirando contra mim”? Somos um país em que um time inteiro de futebol apoia um estuprador em nome da “união do grupo”? Ou somos um país com vergonha na cara? Digam aí. Não é sobre futebol, nossa eterna vitrine. É sobre o que somos de verdade.