Sobre o consenso obrigatório

Túlio Ceci Villaça
3 min readApr 12, 2021

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Não sei se tem nome um fenômeno da opinião pública muito importante para entendê-la, que eu chamaria de consenso obrigatório. É quando uma tese ou um nome se tornam tão populares que o simples ato de divergir se torna extremamente difícil. É quando se forma uma onda de popularidade que vai engolfando incautos e atropelando opositores. Ela teme pouco de racional, mas tem suas razões, mesmo que sejam razões que a própria razão desconhece. Já aconteceu várias vezes e me parece que neste momento há um consenso que se rachou e outro em formação, oposto ao anterior.

Nem precisaria dar um exemplo, mas dou: em 2016, em São Paulo, qualquer argumento inicial contra o golpe era rebatido por “você não vai defender a Dilma / o PT, vai?” Em 2018, na Zona Norte do Rio de Janeiro, qualquer um que não fosse um entusiasmado com Bolsonaro tornava-se automaticamente um pária. E ainda é assim em boa parte. Evidentemente esta onda também atoa no sentido oposto, Lula se elegeu assim em 2002. Independente do que fez no governo, ele foi eleito por um consenso obrigatório que constrangeu seus detratores — e que se desfez adiante.

Falo disso tudo porque finalmente o consenso obrigatório de Bolsonaro dá sinais de se romper em diversos pontos. A pesquisa que mostra Bolsonaro pela primeira vez com mais de 50% de ruim/péssimo é reveladora. As demonstrações de força reunindo-se com empresários e promovendo marchas não apenas demonstram que ele percebeu, mas são pífias por si sós — os empresários são os que o apoiam desde sempre, e as marchas não só levam cada vez menos gente como também não são mais novidade.

Mas há gestos reveladores, mais expressivos que os números. Assim como o haitiano que rompeu o vozerio dos apoiadores para dizer ao Bolsonaro o diagnóstico “o seu governo acabou” (e estava certo. Não há governo nem nada parecido com isso), hoje um ambulante enfrentou a marcha da família fascista para criticar Bolsonaro abertamente. Acabou expulso pela PM, que o chamou de vagabundo (logo ele, que trabalhava num domingo). Sua fala é importantíssima, porque marca a rachadura do consenso: não é um militante, não é um politizado. É sujeito que passava e e viu no direito de discordar.

E se viu neste direito porque ali na avenida havia um consenso obrigatório localizado, mas o consenso maior que o sustentava não há mais. Está deixando de ser tabu criticar Bolsonaro fora da bolha de esquerda. Cada vez há menos quem o defenda de volta — há o silêncio de muitos e a adesão tímida de outros. A sua aprovação hoje é de um quarto, mas os cálculos de pesquisas são de que os realmente leais ao fascismo sejam pouco mais de 10% apenas.

Estamos a caminho da construção de um consenso obrigatório que vai encurralar este grupo. Quando isso acontecer, é possível que as ações políticas se precipitem. Ou, se levar um ano e meio para isto, que Bolsonaro seja expulso pelo voto. Não me atrevo a cravar uma das opções. Mas não vejo nada no horizonte capaz de reverter este processo. Bolsonaro está a caminho de se tornar uma unanimidade negativa, e seus apoiadores se tornarem párias como o Brasil no mundo, invertendo 2018. Não gosto de política feita com o fígado, mas neste caso há muitas vidas em jogo, com urgência. Que seja logo.

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Túlio Ceci Villaça
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