Sobre motivos e pretextos

Túlio Ceci Villaça
3 min readNov 2, 2019

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Desde a Nova República, para um presidente ser deposto no Brasil são precisos um motivo e um pretexto. O pretexto não precisa ser bom e, em última instância, pode ser inventado. Já o motivo precisa ser de verdade, mas não para a legalidade ou para o vulgo, e sim para quem importa. Há dois motivos principais para se derrubar um presidente no Brasil; ele descuida da economia de forma a começar a causar prejuízo nas grandes corporações, ou ele descuida da distribuição de benesses à classe política e perde sua base de apoio. Collor caiu principalmente pelo segundo motivo; Dilma, pelos dois, agravados pela distribuição de renda que incomodava a classe média. Pedaladas, Fiat Elba, foram pretextos. Não vale a pena discutir se foram bons ou não, ilegais ou não. Foram úteis a quem interessava, e, independente de nossas opiniões, não éramos nós.

Temos então se aproximando a conjunção de motivos e pretextos para a derrubada de mais um presidente. Falemos primeiro dos motivos: como se sabe, a economia está em coma, por mais que manchetes desinteressadas apontem tímidos sinais de retomada. A Reforma Trabalhista serviu para zero, como esperado, a da Previdência idem, a liberação de FGTS serve para pagar dívidas, o desemprego se mantém, os capitais fogem do país, as exportações despencam, os acordos comerciais alardeados se revelam inócuos, as expectativas de crescimento se mostram irreais, e o governo mantém suas contas basicamente cortando gastos fundamentais como educação, vendendo ativos lucrativos e forçando aportes do BNDES, desviando o dinheiro que devia estar sendo usado para ativar a economia. Usa este dinheiro para pagar suas contas e zero investimento.

Afora isso, não existe base parlamentar além do consenso das medidas neoliberais — justamente as que sustentam precariamente as contas. Nada mais de importante é aprovado, já que o partido do governo está em guerra interna, os escândalos se sucedem e as aprovações dependem de toma-lá-dá-cá com Câmara e Senado. Para a Previdência ser aprovada foram milhões em emendas, milhões que o governo já mal tinha. Para aprovar o filhão Embaixador não sobrou, e precisaram dar um cargo de consolação no partido rachado mesmo. Simplesmente não há dinheiro para aprovar mais nada, e se as emendas prometidas não forem cumpridas, a frágil cooperação do Congresso se esvairá.

Portanto, os motivos vão se acumulando. Faltam os pretextos. Ah, mas isso é o que não faltam. Dezenas e dezenas de quebras de decoro poderiam ser suficientes, mas a ordem para recusar ajuda financeira aos estados do Nordeste, a inação diante das queimadas amazônicas e da mancha de óleo no mar são igualmente motivos suficientes. E há ainda os jurídicos: o envolvimento com milícias vai se mostrando cada dia mais evidente, e ao menos duas vezes o próprio presidente informou candidamente ter sido informado de inquéritos sigilosos: um envolvendo seu filho senador pelo ministro da Justiça, e agora um envolvendo seu próprio nome, pelo governador do Rio de Janeiro.

E como senão faltasse nada, ele aproveitou para confessar ocultação de provas e obstrução de justiça ao ir buscar as gravações de ligações do seu condomínio antes da polícia, alegando que elas seriam adulteradas. Adulteradas por quem, pela polícia? A mesma polícia que ele defende tanto?

Sei não, mas a impressão que tenho daqui é que Bolsonaro está tratando de criar a tempestade perfeita contra si próprio. Ele está queimando todas as pontes e esgotando a paciência de todos os que já o apoiaram. Como disse o Cícero< “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio?” Posso estar errado, mas tenho para mim que, a esta altura, não por muito tempo.

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Túlio Ceci Villaça
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