Sobre duplas sertanejas e monoculturas

Túlio Ceci Villaça
3 min readMay 28, 2022

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A descoberta de uma série de shows de cantores de estilo new-sertanejo em cidades minúsculas com cachês astronômicos pagos pelas prefeituras traz de novo à baila a questão do financiamento à cultura. Que estes mesmos artistas sejam críticos acerbos da Lei Rouanet é sintomático. Claro que não precisa de renúncia fiscal quem recebe diretamente dos governos. Mas é também sintomática a fala do Sergio Reis afirmando que o dinheiro da prefeitura não é público.

A fala é evidentemente absurda lida aqui, e o Sergio Reis já mostrou o abilolado que se tornou pregando o golpe de estado — ele que é deputado federal e devia ter tido o mandato cassado por isso. Mas ela é reflexo também da forma como se encara o que é público no Brasil. O que é público na verdade é o que não é de ninguém, e portanto é de quem chegar primeiro, e isto vale para verbas, terras e tudo o mais, em especial longe dos grandes centros.

Mas voltando à farra dos shows, quase certamente o que há é um grande conluio político, e os cachês são só a ponta do novelo. Pois o favorecimento das prefeituras vem em troca de algo, que será apoio político, propaganda nas rádios que estes sertanejos dominam no interior (os mesmos empresários das duplas têm as rádios), e há a relação com os rodeios e eventos onde as duplas se apresentam e as prefeituras são mencionadas, e precisam dar autorizações para realização… e ainda temos as relações com o agronegócio, patrocinador das feiras e rodeios. É todo um circuito que se realimenta à base do favorecimento mútuo. Seria até muito interessante, se boa parte dele não acontecesse à margem da lei.

E aí vem a outra questão, que é como desmontar este esquema e substituí-lo por um sistema de financiamento que permita uma pluralidade de formas artísticas em vez da monocultura, e consiga tornar auditável um processo que é em boa parte subjetivo — pois as contratações de shows das prefeituras são sem licitação, e é assim que tem de ser, como é que vai se escolher com base técnica quem deve se apresentar?

Uma resposta já foi dada, e uma bela resposta. Os Pontos de Cultura instaurados pelo Gilberto Gil no ministério (do Lula, é bom lembrar) foram um alento para a cultura do país, em especial no interior. Deles, do que o próprio Gil intitulou como um do-in no país, em pontos chaves de energização, surgiram cenas artísticas diversas que perduraram e hoje tentam subsistir a duras penas neste cenário de holocausto.

E o melhor deste caminho é que é um caminho de construção, não de destruição. Porque os esquemas de favorecimento das prefeituras precisam ser desbaratados — e se o forem, vai se mexer num vespeiro de gente poderosa e, naturalmente, apoiadora do fascismo. Mas é preciso que haja algo para ser posto em seu lugar, de preferência muitos algos. A única forma de evitar que ele vá se repetir logo adiante — ou apenas continuar apesar das descobertas — é fortalecendo a cultura plural que ele mata da mesma forma que a soja transgênica mata a terra.

São então três problemas intimamente relacionados: a pequena política de compadrio, o grande latifundiário e a dupla new-sertaneja — ou não exatamente elas, mas o monopólio artístico empresarial que sufoca toda a diversidade de florescer. Três abacaxis a descascar neste Brasil do segundo milênio. Nisso tudo, a demonização da Rouanet é só um detalhe, ou mesmo uma cortina de fumaça, mas ela pode vir a ser um instrumento importante, claro. Só não pode ser o único.

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Túlio Ceci Villaça
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