Sobre dois significantes vazios

Túlio Ceci Villaça
5 min readSep 26, 2021

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Ainda pensando nos alucinados brasileiros que ainda seguem presos no mundo bizarro paralelo construído pelo fascismo tupiniquim — à parte os fascistas convictos, uma fração minúscula deles, mas os que embarcaram na desvinculação à realidade. É verdade que esta desvinculação é uma tendência civilizacional em que as tecnologias se desenvolvem mais rápido que a capacidade humana de assimilar seu uso, e portanto a episteme pública (conceito inventado por mim e que não tenho certeza de fazer sentido) vai penar, sofrer e mudar, sem nenhuma garantia de ser para melhor

Mas isso é algo a ser enfrentado pela Humanidade como um todo. Em compensação, a curto prazo e em termos de Brasil, estou otimista quanto a esta turma possuída pelos obsessores dos grupos de zap. Bem, eu sou mesmo muito mais Poliana que Cassandra, mas tenho meus motivos, e explico.

Minha teoria: o fascismo tupiniquim é construído sobre dois pilares ocos, e é o fato de serem ocos que lhe dá força. São, por assim dizer, dois significantes vazios (conceito que provavelmente estou deturpando, mas que me serve deturpado, então vá lá), duas coisas que dizem nada por natureza, sob a aparência de dizerem muito, e por isso permitem que se impinja nelas o significado que se preferir ou precisar, sendo uma destas coisas física e a outra de linguagem, complementares entre si. São elas o corpo de Jair Bolsonaro e a filosofia de Olavo de Carvalho.

Bolsonaro é, por si, algo sem nenhum significado. Ele mente o tempo todo e se contradiz o tempo todo, mas isto não importa a seus seguidores porque sua fixação é com sua figura, seu corpo mesmo — há um estudo fascinante, não lembro mais de quem, sobre o corpo de Lula e como ele amarrava em si, na sua pessoa, as contradições brasileiras e as anulava, as resolvia em si, ainda que precariamente — e a fala recente dele ao Mano Brown de que não é branco nem preto, é o Lula, é sinal claro que ele continua tentando fazer isso. Se vai conseguir é outra coisa.

Fato é que Bolsonaro, de forma diferente mas similar, resolve em si tanto as contradições quanto a própria inércia de seu governo, porque para seus seguidores seu governo corresponde à exposição de sua pessoa, e portanto ele governa fazendo suas lives, indo a manifestações e falando na ONU. Isto é seu governo, e para eles é excelente, porque é a concentração em sua figura de tudo o que eles anseiam, e atrevo-me a dizer que importa pouco o que ele diz — até porque é péssimo orador.

E o nível de concentração de potência simbólica em seu corpo é tão grande que até a esquerda cai nessa (lá vou eu de novo…) ao insistir e tornar a insistir na tese do atentado falso. Para a oposição que embarca na fetichização do corpo do líder, seu maior crime não é a morte de quase 600 mil pessoas, é forjar um atentado contra si próprio — e de certa forma dão credibilidade a sua fala de imorrível, ao não crerem nem que ele possa ter sido atacado. Bolsonaro posa de invulnerável mesmo quase tendo morrido, e quem acredita nisso com mais fervor é parte de sua oposição. Vai entender.

Mas vamos ao outro gancho onde esta rede se pendura. Jornalistas que já frequentaram o curso eterno de filosofia do Olavo de Carvalho atestam: o curso é nada. É um palavrório sem direção, tiradas de efeito, instruções políticas (que se contradizem com o tempo), aforismos (que se contradizem o tempo todo), e nenhuma profundidade.

Nem vou falar dos palavrões e apelidos de quinta série que distribui aos desafetos. Seus discípulos dizem que, sem ler seus livros não se pode criticá-lo. Porém, os livros de Olavo, quem leu com algum rigor também afirma que não estabelecem nenhum sistema de pensamento (mas até aí ok, nem todo filósofo elaborou um sistema) — e sequer chegam a desenvolver reflexões que tenham o mínimo rigor. O que ele faz é dispersar opiniões peremptórias a esmo. Mas é justamente aí que está sua força: assim como o corpo de Bolsonaro não quer dizer nada e por isso mesmo diz o que se quiser que diga, o discurso vazio de Olavo, construído sobre vigas que apoiam umas às outras sem que nenhuma toque o chão, serve para que ele signifique o que se quiser.

Estes dois significantes vazios vão se adequando às necessidades de poder de cada época — em termos religiosos, por exemplo, Olavo já foi muçulmano e hoje advoga um cristianismo conservador, enquanto Bolsonaro oscila entre o catolicismo e o neopentecostalismo. Mas aí está a boa notícia: embora o fascismo tupiniquim tenha suas ligações externas, retirando-se estas duas pilastras, ele se esvai. De forma parecida com a que ocorreu nos EUA, em que a saída de cena de Trump, inclusive sem direito a redes sociais, correspondeu a um esvaziamento de sua base disposta a agir (embora lá, pelos motivos do primeiro parágrafo, a onda do descolamento da realidade seja mais forte).

Isto significa que os fiéis daqui, ainda mais que os de lá) são fortemente dependentes da presença física de um e da continuidade do discurso de outro. Sem eles, sua fé não tem sustentação, porque não há persistência do estímulo, a cenoura é retirada de sua frente, não há mais a proposição de um novo alvo fantasma a ser alcançado — voto impresso, cloroquina, dissolução do STF etc. Sem eles presentes a roda para de girar e o encanto começa a se desfazer. E eles estão prestes a sair de cena.

Olavo tem saúdes de problema que têm se agravado. Ele tem cuidado de lançar sua imagem à posteridade em filmes de seus discípulos, mas isto é pouco e ele sabe: sem que ele próprio alimente suas polêmicas, seu pensamento não para de pé e não sobrevive a ele. Já Bolsonaro está cercado por vários lados, mantendo seus escudeiros Lira e Aras, que impedem que seja processado. Mas isto é sua última linha de defesa. A que lhe dá realmente blindagem é a da manutenção de seus alucinados, e estes dependem da sua contínua exposição — e esta lhe compromete em outras instâncias a cada vez que acontece.

Este é o motivo de minha polianice. Tudo isto me dá a impressão de que a — vá lá, episteme pública fascista tupiniquim não tem como se sustentar a médio prazo, por mais que tenha sido estruturada em uma rede tão gigante, porque esta rede é ancorada em dois pontos que, retirados, fazem com que estas percam seu sentido e passem a girar em falso, já que existem em função destes dois — um diretamente, no culto ao corpo do líder, o outro pela criação do espaço semiótico em que este culto pode acontecer. Assim que um ou os dois forem retirados de cena, o castelo de cartas desaba e os seguidores da seita se dispersam.

O tempo dirá, e o quanto antes, melhor.

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