Sobre dois moleques

Túlio Ceci Villaça
3 min readMar 15, 2019

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Uma história de dois rapazes da periferia da Grande São Paulo. Dois adolescentes, um na idade, outro na mente, morando com os pais. Para um deles, um tio arrumou emprego na sua lojinha, mas ele começou a roubar e foi demitido. O mais novo era deslocado na escola, não se enturmava, não se dava bem com as garotas, acabou saindo da escola, não se sabe se por desinteresse ou expulso por arrumar alguma confusão. Os pais de ambos são de baixa escolaridade, mas eles têm computador em casa, no quarto, e se aventuram pela internet.

Até que descobrem sua turma. A turma dos deslocados, que têm raiva do mundo que não os aceita, que não lhes dá o que eles confusamente querem. A turma dos auto-condescendentes, que decide transformar os defeitos em virtudes. Mas principalmente uma turma de adolescentes e pós-adolescentes como eles, de todas as idades, até o ponto da irresponsabilidade absoluta, até o ponto do crime. Um mundo auto-indulgente, onde todos estão errados, menos eles. Lá eles são bem recebidos, mas anonimamente — e gostam disso. Lá eles podem não ser dois moleques sem traquejo, com famílias problemáticas, lá eles podem ser quem eles quiserem. Podem dar vazão a seu ressentimento, frustração, sua agressividade, e terão aprovação e reforço. E mais que tudo, lá eles têm segredo.

Porque os pais e responsáveis deles não têm a menor ideia de onde eles estão metidos. E não tanto por desleixo, mas porque eles sequer sabem que uma turma dessas exista, e muito menos como acessá-la. A tecnologia andou rápido demais, as professoras da escola conhecem livros, mas não a internet profunda e escura onde eles estão. Os pais, então, nem se fala, e agora talvez até sintam um certo alívio por seus garotos não andarem por aí arrumando confusão, ficam trancados no quarto o tempo todo, quietos. E os garotos, que nem são mais garotos, que se sentem incompreendidos e sozinhos, mesmo quando não estão, mesmo quando estão errados, agora efetivamente estão.

Ou melhor, não estão, porque estão na turma, ou melhor, na turba de anônimos que, paradoxalmente, querem se destacar. Suas frustrações de insucesso na vida prática se projetam em rancor e planos terríveis. Dentro da própria internet é mais fácil ser ousado, e então os hackers, haters, trolls, fazem a festa. Mas a coisa toma proporções ainda mais sérias, com ameaças de morte, pedofilia, cultos neonazistas, misoginia, homofobia, racismo. E que está na chuva é pra se queimar, então a raiva das garotas que não queriam nada com eles se transforma em ódio a todas as mulheres, o insucesso na escola vira ódio aos negros e suas cotas, o insucesso na vida vira ódio de tudo e todos, e a vontade de ser aceito em algum grupo, que agora é este, faz com que não apenas todas as teses defendidas sejam adotadas entusiasticamente e haja mesmo uma competição para ver quem é o mais entusiamado, mas também quem chega a tomar na vida real as atitudes apregoadas internamente se transforma em ídolo, em mito. Ainda que seja preso. Ainda que esteja foragido. Ainda que morra.

E aí eles vão, e saem da vida para entrar na história pela porta dos fundos.

Grupos de discussão da Deep Web como o Dogolachan estão para estes garotos da periferia assim como os cursos do Olavo de Carvalho estão para os garotos um pouco mais escolarizados, mas igualmente ressentidos com a cultura acadêmica, com a falta de reconhecimento intelectual, com a vida. E assim como estes decorrem em parte de um fracasso educacional, a hipnose de adolescentes por grupos de incitação ao ódio decorre em parte da incapacidade de nossa educação em acompanhá-los nas mudanças midiáticas que os alcançam. É preciso jogar luz sobre a Internet Escura e sobre estes grupos, não apenas investigando-os e punindo os criminosos que há neles- inclusive seus criadores e operadores -, mas também e principalmente educar pais e professores para que estejam atentos e saibam do que se trata, para evitar que morram mais inocentes e que mais moleques irresponsáveis, manipulados por canalhas, se transformem em criminosos e mártires.

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