Sobre a sociedade incivil
Foi bonita a festa da democracia hoje, sem ironia. Assinei o manifesto e assinaria de novo. É mesmo muito necessário que a sociedade civil se mobilize contra ameaças de golpe, que estão sendo ventiladas a todo vapor nas redes subterrâneas fascistas, sem mais nenhum subterfúgio ou desculpa.
Mas é preciso ter em mente que o fascismo não atua na sociedade civil. Ao contrário, ele a devora pelas beiradas. E enquanto as pessoas que acreditam firmemente na democracia se reuniam hoje, ele está atacando diretamente a sociedade incivil, aquela que fica á margem. E é preciso estarmos muito atentos a isto.
São dois os ataques, um com a aparência benéfica de uma frágil bonança na economia, e outro com a cara feroz da propagação do ódio. Este é o movimento em pinça que está sendo feito. Vamos a cada um.
Este mês foi anunciada deflação. Foi causada exclusivamente pela baixa dos combustíveis, porque todos os restantes artigos de consumo, incluindo comida, subiram. Mas subiram menos. E o desemprego diminuiu. Os empregos que surgiram agora são muito piores, mas quem estava sem trabalho há três anos está trabalhando, sem carteira, ganhando menos que há três anos, mas mais que há dois meses. E há o Auxílio, que vai só até dezembro, mas está vindo.
A parcela da população que se preocupa hoje com o que vai comer amanhã se decuplicou neste governo. Isto conta contra ele, mas justamente porque precisa ser imediatista, esta parcela da população se inclina imediatamente a quem lhe concede a aparência de melhora. A visão que parte da esquerda tem de uma gratidão eterna a Lula é, ao menos em boa parte, ilusão. O voto não é gratidão, é perspectiva. E pode parecer contraditório, mas para muitos é perspectiva a curto prazo.
E o outro movimento é o do ódio. As publicações da Michele contra religiões afrobrasileiras não são aleatórias. A associação do fascismo com os líderes televisivos das seitas neopentecostais é bem real (Tenho profundo respeito pelo protestantismo, mas não por Macedos, Soares, Malafaias e que tais). Neste momento, em cultos espalhados por todo o Brasil, há pastores dizendo que Lula é do Diabo, assim, com estas palavras. E cerca de um quarto da população brasileira hoje se diz protestante.
Isto não é novidade, aconteceu em 2018 com mamadeiras e kits. Está acontecendo de novo, pelos mesmos meios e atingindo as mesmas pessoas. E muitas delas, pelo outro lado, estão tendo um pequeno desafogo nas suas contas. E estão mudando seus votos. Porque para esta parcela da população, democracia é um conceito distante, que não alimenta. A moral do pastor está bem mais próxima.
Ah, mais uma coisa: Bolsonaro foi a um podcast ser entrevistado por cinco horas seguidas. Já vi todo tipo de minimização: 80% da audiência o apoiava, o entrevistador o contestou… tudo bobagem. Se tivesse contestado, a entrevista teria durado 10 minutos. E o Tik Tok neste momento está inundado de mitadas, e entregando este conteúdo a todo mundo, não só apoiadores, porque o algoritmo das novas redes é assim. É absolutamente necessário que a oposição ao fascismo se ajuste a esta comunicação.
Não tenho, repito, a menor intenção de desvalorizar a mobilização que houve hoje no Largo de São Francisco. É importante. Mas é muito pouco. É preciso estabelecer, e rápido, meios de disseminação da verdade e de contraposição à veiculação do ódio. É preciso pressionar as autoridades a fiscalizarem os cultos, assim mesmo. É preciso um jornalista investigativo ir a um culto e filmar o pastor. É preciso que as redes de Whatsapp e Telegram sejam canceladas por ordem judicial. E é preciso muita pressão — aí sim — da sociedade civil neste sentido. Porque faltam 50 dias, e são os dias mais importantes deste século.