Sobre a miliciarização do país

Túlio Ceci Villaça
3 min readJun 13, 2022

--

Foram encontrados objetos pessoais do Dom e do Bruno. Eles estão sendo tema de reportagem no Fantástico, e seu desaparecimento está causando reações em todo o mundo, em boa parte por se tratar de um cidadão inglês. Mas a verdade é que para a maioria dos brasileiros, é um assunto que interessa pouco diante de suas preocupações pessoais. Mas não deveria, porque o que aconteceu com eles é sintoma de algo muito maior, que pode ser chamado de miliciarização do país.

Milícias, sabemos, consiste em a polícia deixar de ser cúmplice dos bandidos aceitando seu suborno para expulsar os bandidos e tornar-se ela própria a bandida, tomando seu negócio para si. É um passo adiante na corrosão social e na destruição das instituições, porque pega pedaços do território e exclui o Estado delas (ou ocupa os que ele deixava abandonado), e agora este sucedâneo tirânico do Estado ocupa o espaço.

Dito isto, vamos começar a juntar os pontos. Bolsonaro é do Rio, cúmplice e comparsa de milicianos, que ele empregou como assessores e financiou. Isto é sabido. E também são sabidas suas ligações com o garimpo. Bruno Pereira foi exonerado da Funai por Sergio Moro quando ministro da Justiça, por ter incomodado garimpeiros ilegais. O Presidente da Funai é delegado da PF.

Quando houve o assassinato da Marielle, a investigação demorou para avançar porque foi seguidamente sabotada de dentro da PM — isto foi descoberto mais tarde. Quando Dom e Bruno desapareceram, o exército levou dias e dias para se engajar minimamente na busca, cedendo helicópteros. O trabalho de busca mais eficaz foi feito pelos indígenas. O exército parecia querer deixar o tempo passar para ter certeza de que eles estavam mortos.

A Chacina do Jacarezinho, ocorrida há um ano, foi feita não pela PM, mas pelo Polícia Civil. Já a chacina da Vila Cruzeiro, este ano, teve agentes da Polícia Rodoviária Federal. Sinais de que a gangrena da instituição Polícia está espalhada por todas as suas divisões.

Pontos ligados, é fácil concluir que o modelo de milicia carioca foi levado a todo o Brasil pela administração Bolsonaro, e este possivelmente é seu maior feito e legado. Todas as polícias e Forças Armadas foram corroídas pelo seu discurso. Para além de todas as críticas já conhecidas, os desvios em suas fundações que as levam a perpetuar desigualdade e injustiça — a miliciarização de suas atuações se dá bem mais recentemente, e é acelerada brutalmente pela chegada do fascismo no poder, pelo liberou geral dado pelo próprio presidente da República. Ele retira pessoalmente o Estado dos lugares, se preciso exonerando os funcionários que se opõem, para que a milícia possa assumir. E é isto que está acontecendo na Amazônia, uma replicação com adaptações em um território muito vasto do que aconteceu e acontece nas comunidades cariocas.

No momento em que escrevo não é possível dizer ainda que Dom e Bruno foram assassinados, por mais que indícios se acumulem e ambos fossem figuras absolutamente incômodas para as milícias da região. Mas a quantidade absurda de ambientalistas, quilombolas, indígenas, sem terra mortos nos últimos quatro anos, assim como a subversão das instituições que deveriam agir em defesa destes grupos e da falta absoluta de vontade de investigar por parte das polícias em todos estes casos (assim como nas chacinas cariocas, assim como na morte da Marielle), não me deixa dúvida de que uma outra coisa urgente e dificílima a ser feita pelo novo governo será levar o Estado de volta (e em alguns casos pela primeira vez) a estes lugares que estão ganhando Estados paralelos — e para isto estes Estados paralelos, formados por agentes do próprio Estado, precisarão ser enfrentados.

--

--

Túlio Ceci Villaça
Túlio Ceci Villaça

No responses yet