Sobre a foto de Lula e Janja, uma iconografia

Túlio Ceci Villaça
5 min readAug 24, 2021

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Eu sou muito pouco imagético, por isso, quando vi a foto do Lula com a namorada pela primeira vez, passei batido. Mas depois a vi de novo, e de novo, e vi a comoção em torno dela, e fui obrigado a enxergar. E, mesmo não sendo um cara imagético, mas tendo aprendido um bocado com meus amigos do CCBB quando trabalhei lá, queria tentar entender um pouco do que esta imagem provocou, como e porquê.

Começando pelas beiradas: a foto não foi publicada pelo próprio Lula, mas sim pela Janja, sua namorada. Este detalhe é importante porque elogio em boca própria é vitupério. Embora ele pudesse postar uma foto dos dois abraçados e seria fofo e tal, esta foto em particular não é bem isso, como se percebeu. Daí ser importante que seja validada pela companheira, sendo então um elogio em boca alheia, com mais credibilidade.

Sobre a postura dos dois, ele a abraça de forma protetora, um pouco — mas não muito — acima dela. Uma posição que bate perfeitamente com a imagem de paizão protetor que ele vem imprimindo em campanha (pois esta é uma foto de campanha). Protetor da mulher, da família, do mais fraco em geral. A noção de agradecimento por parte do mais fraco se mostra tanto pela publicação da própria foto da parte dela quanto pelo fato de ela usar uma blusa com a estampa dele. O que já passa do agradecimento simples para uma devoção. A Janja como que dá o exemplo para quem vê a foto: ele protegerá vocês, vistam a camisa dele.

Mas passemos destes detalhes importantes mas subliminares, e passemos ao que efetivamente deixou todos em polvorosa. Primeiro a coxa torneada, resultado de malhação sem dúvida. Ora, isto denota força física e saúde. Lula tem 75 anos e já enfrentou um câncer. Num pais que tem recorrido a vice-presidentes com mais frequência que o recomendável, é importante que um candidato demonstre estar saudável. Esta é a primeira mensagem passada pela coxa musculosa, mas há a de força também. E aí Lula entra pela primeira vez num terreno semiótico que não lhe era comum, e parte para uma disputa — literalmente- corpo a corpo com seus oponentes mais próximos à presidência.

Porque o músculo da perna à mostra indica tração, capacidade de avançar, e o põe em direta comparação física com seus adversários. Indica disposição para o trabalho e, se necessário até o confronto. Mas ainda me refiro somente à coxa malhada. Porque aí passamos efetivamente ao elemento mais mobilizador da foto, não disfarcemos: o volume sob a sunga.

Que aparentemente está fora do foco principal da foto do excepcional Ricardo Studart, que acompanha Lula há muitos anos. Mas isto é engano. Vista a foto inteira, vertical, o tal volume está em posição de destaque. Se nossa visão é logo chamada para os rostos num primeiro momento, num segundo a sunga preta, ao lado do short branco dela, é o movimento natural dos olhos em seguida, passando direto até pela estampa da blusa dela. Na hierarquia da imagem, os rostos ocupam o polo superior e a sunga (e a coxa) o polo inferior, correspondentes entre si.

E com isto entramos na disputa semiótica barra-pesada, direta. Pois até agora os dois candidatos que se apresentam com mais força além de Lula na disputa são os que primam pela demonstração de

masculinidade: Bolsonaro e Ciro (não os igualo politicamente de forma nenhuma, esta é uma análise muito diversa, aviso logo) têm a masculinidade em alta conta, são personalidades do tipo “faço e aconteço” — mesmo que Bolsonaro na prática não faça nem aconteça nada e não passe de um bravateiro. Mas as imagens que projetam são estas, a de sujeitos de pau grande e dispostos a pô-lo na mesa, para usar as expressões que melhor traduzem esta imagem.

Lula não, ao menos até agora. O Lulinha Paz e Amor que o elegeu em 2002 era bastante o contrário disto, aliás, um conciliador. E mesmo agora, o que a imagem sugere não é um enfrentador nato, nada disso. A masculinidade exibida por ele é atenuada — ou direcionada, pela presença da namorada. E isto muda tudo, porque dá a esta virilidade um direcionamento bem mais simpático que de seus adversários. embora estes tenham ou tenham tido a seu favor mulheres bonitas que os elogiam, nunca usaram isto a seu favor de maneira inteligente. O rompante de Ciro numa entrevista dizendo que a função de Patrícia Pillar na campanha era dormir com ele dá noção disto. E Micheque… nem vou comentar.

Pois aqui, e voltemos á imagem, o que temos é uma mulher feliz, satisfeita, e — volto a lembrar — ela mesma postou a imagem. Aqui, a virilidade do homem está voltada para o caminho tido como natural, permitindo que a agressividade dele seja controlada e usada apenas quando realmente necessário. Lula mostra ser um homem capaz de fazer uma mulher feliz, e exibe uma potência com a naturalidade que nem Bolsonaro nem Ciro souberam exibir até agora.

E isto foi o que causou o siritcotico nas redes, o equilíbrio? Claro que não. O que causou o frisson foi a virilidade em si, porque, se os seguidores do fascismo (não só) tupiniquim são fascinados homoeróticos em grande parte, nenhum de nós (nem eu, tão pouco imagético….) somos imunes a estas simbologias e a seu apelo arcaico. Daí o festival de memes, sendo o mais cruel o que compara a foto com a de Bolsonaro com uma roupa de mergulho apertada que lhe rouba inteiramente a virilidade, acrescida do título do edital do Estadão: Uma escolha muito difícil.

Soube, que espelhando o entusiasmo nas redes de esquerda, nas fascistas houve só constrangimento — é o tipo de coisa que eles simplesmente não têm como responder. E pior ainda para eles, o maior furor dos memes aconteceu entre perfis de rede habitualmente apolíticos — exatamente aqueles que foram conquistados pelo fascismo em 2018 na base da piada. Lula lhes forneceu um bom mote para fazer galhofa com seus oponentes, jogando o jogo imagético deles com mais competência.

(E acrescente-se que todo o jogo de significados que relato aqui contêm uma dose inescapável de machismo, desde o protetorado de Lula sobre Janja até o meme em que Bolsonaro é inferiorizado por ter uma vulva… claro que o que está em jogo é ridicularizar sua masculinidade ostensiva. Mas o fato é que a foto de Lula transpira conservadorismo, e é proposital — é com este público que ele está se comunicando. Que a esquerda tenha se entusiasmado apesar disso diz muito sobre como somos guiados por instintos em nosso pensamento político, sem exceção).

A campanha presidencial do ano que vem começou assim que foi anunciado o resultado da última, pois cada pequeno ato de Bolsonaro visa continuar no governo, mesmo que não governe, mas hoje apenas para não ser preso. Pois para Lula parecia que a campanha começara quando seus processos foram anulados. Engano, esta era apenas a condição inicial. Sua campanha começou nesta foto só aparentemente despretensiosa, mas que deu o tom de como enfrentará o fascismo, com potência e galhofa em doses medidas. Ainda tem muito chão para percorrer, e certamente haverá respostas — Ciro em especial está trabalhando para modular sua imagem. Torço por ele também. Se ambos souberem posicionar suas imagens de forma mais inteligente que Bolsonaro, podem tirá-lo do segundo turno. Aí não quero outra vida.

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