Sobre a autocracia do STF
Eu falo que sou um legalista não é de hoje. Então, por uma questão de coerência, eu não fico confortável com o processo das fake news e atos anti-democráticos levado pelo Alexandre de Morais, por vários motivos. E mesmo assim, ele é o melhor que temos e que pode acontecer para deter o fascismo. Pronto, já dei a conclusão, quem tiver curiosidade sobre o raciocínio que levou a isso, leia o resto.
Antes de tudo, porque detesto o Alexandre de Morais. Não podemos esquecer sua atuação como secretário de segurança em São Paulo, sua atuação desastrosa como Ministro da Justiça (em determinado momento, ele foi mantido no cargo apenas porque parecia com o Kojak — estou falando sério!) e a campanha constrangedora que fez ao STF, com passeios de iate com prostitutas oferecidos aos senadores. A imagem dele brandindo um facão no meio de uma plantação de maconha no Paraguai nunca deve ser esquecida.
E passando ao processo, falemos na encolha: tecnicamente, a reclamação do Bolsonaro procede. Olhando unicamente o processo e nada mais em volta, não é correto que o mesmo juiz inicie o processo, ordene as investigações, faça o julgamento e mande prender. Fere o princípio da impessoalidade e se torna uma concentração de poderes assustadora. Eu considerei absurdo e criminoso que Sergio Moro agisse assim, e considero agora (embora Moro desrespeitasse leis muito mais abertamente, como aprendemos com Gleen Greenwald). Não é bom que isto aconteça, não deveria haver nenhuma instância judicial ou política com este grau de influência no destino do país que fosse decidida desta forma personalista.
Mas é justamente desta última frase que devemos partir para avaliar o que está acontecendo. Porque há ao menos duas outras pessoas neste momento atuando diretamente para impedir a justiça: uma eleita diretamente como deputado e indiretamente como presidente da Câmara; e outra escolhida a dedo exatamente pela pessoa que ele é o único responsável por acusar. O primeiro está sentado sobre mais de 130 pedidos de impeachment; e o segundo age firmemente para barrar qualquer acusação que possa ser feita contra o presidente.
E aí está o problema. Só Lira pode aceitar o processo de impeachment, e sem o aval de Aras nenhum processo contra Bolsonaro pode prosperar. Se o primeiro tem ao menos a seu favor o álibi de que o impeachment é um processo político (detesto este argumento, mas ele existe e há quem o aceite), o segundo não tem qualquer desculpa. Ele é o chefe dos advogados de acusação do governo, que existem com independência para acusá-lo caso seja preciso. Para defendê-lo existe a Advocacia Geral da União. Só que o atual Procurador Geral e o Advogado Geral concordam em quase 90% dos casos envolvendo o presidente — sempre por não abrir processo.
O motivo é conhecido. Aras foi nomeado fora da lista tríplice da categoria, comprado com promessas de nomeação para o STF, e mesmo passado para trás mantém esperanças e quer sua recondução ao cargo, e para isto é um poste do presidente (mas ele processa quem disser isso). Ele não veria crime de Bolsonaro mesmo que o presidente matasse alguém na sua frente, com suas próprias mãos. E repito, ele é o único com a responsabilidade legal de fazê-lo.
Ora, esta é uma situação totalmente disfuncional e típica da tática comum do fascismo tupiniquim, que é tomar uma brecha não democrática aberta por um regime anterior e arreganhá-la até destruir a instituição. No caso, a brecha foi aberta por FHC, que ao nomear um PGR chamado Brindeiro e cognominado Engavetador Geral da República, impediu processos contra si por ter comprado a emenda da reeleição. Este é o precedente de Aras, e a partir dele o atual procurador construiu seu império de cegueira, conivência e auto-humilhação.
Portanto, avaliando o caso do processo mas mãos do careca sinistro, não devia ser assim. Não devia ser um juiz único a fazer o que ele está fazendo, porque o MPF já devia ter aberto diversos processos criminais contra o presidente, e não o faz por cumplicidade — e não há quem o detenha. Não devia estar acontecendo o que está porque Bolsonaro já devia ter sido apeado do poder há muito tempo, ou nem assumido, com as inúmeras ilegalidades de sua campanha. Porém, isto não aconteceu. E o que nos restou foi o careca, amparado — é bom que se diga — pelo restante da corte, unida como não costuma acontecer, ao finalmente se dar conta do tamanho da ameaça ao país.
Finalmente, reiterando o primeiro parágrafo: não gosto nem um pouco de depender do Careca, não só por ele, mas por princípio mesmo. Mas não vejo nenhuma alternativa a isto neste momento. Bolsonaro está acuado, apelou ao STF para anular um processo com o qual todo o STF concorda e tenta o impeachment de um juiz do Supremo no Senado ao mesmo tempo que quer a aprovação de outro — e um pedido só atrapalha o outro. Ele não tem para onde correr, pelo mesmo mecanismo que o favoreceu: não há para quem apelar. É a volta do parafuso vindo sobre ele com força multiplicada. Não gosto da forma como está acontecendo, fico desconfortável. Mas me consolo com o fato de que os fascistas estão, muito, mas muito mais desconfortáveis do que eu. Espero que fiquem bem mais.