Por que vou ver a Copa

Eu vou ver a Copa, vou ver todos os jogos que eu puder. Mas motivo para não ver não falta.

Começando pelos nacionais, o sequestro da amarelinha. Que droga, eu acho aquela camisa linda — aliás, acho a bandeira linda também, é a única no mundo com aquelas formas, eu gosto da combinação das cores. E a camisa canarinho impôs respeito ao mundo por décadas e ainda impõe, mesmo depois do 7x1, mesmo depois de tudo. Mas ver aquela camisa usada por fascistas e depois num campo de futebol é como ir assistir um jogo no Estádio Nacional do Chile, onde centenas morreram, onde Vitor Jara foi assassinado. Não dá, tinha de demolir e construir de novo. Era isso que precisava fazer com esta camisa, rasgar, queimar, e depois tecer outra vez.

E ainda por cima, a CBF estampada na camisa é um antro de corrupção, autoritarismo, assédio sexual… e isto há muitos anos. E por cima ainda, o principal jogador do Brasil há anos é um talento inquestionável em campo e um palhaço vaidoso fora dele, isso quando não deixa a vaidade entrar em campo — e apoiou o fascista com a cara de moleque irresponsável que é adorável em campo e odiosa fora.

E daí passamos aos motivos internacionais. Pois a FIFA é outro antro de corrupção, autoritarismo, do qual a CBF é apenas uma filial. Transformaram um esporte querido do mundo todo em um balcão de negociatas que não para de se estender — a mais recente fronteira é a proliferação de sites de apostas que deve ser a meca mundial da lavagem de dinheiro hoje em dia. Negociatas que venderam os locais onde as Copas aconteceram, inclusive esta.

O que nos leva ao Catar, uma monarquia absolutista hereditária com uma desigualdade de deixar a Belíndia no chinelo, com 80% da população imigrante vivendo miseravelmente para sustentar uma elite — situação que se refletiu na construção de estádios e preparação para a competição, com inúmeras violações de direitos humanos. E que compra o que quer, compra times de futebol europeus e comprou a Copa para si, pronto.

Ah, mas dirá um afccionado, tudo isso que você está descrevendo acontece fora das quatro linhas, fora da competição. Porque, desde o momento em que o juiz apita até 90 minutos depois, vale a regra, ninguém é superior às regras, vence o melhor e é bom para o mundo que isto aconteça.

Ora amigo, conta outra. Eu não sou daqueles que dizem que a Copa de 98 foi comprada em troca da do Brasil, que não foi paga etc. Mas é engraçado ver o documentário da Netflix sobre a FIFA, ao condenar com razão a realização da Copa de 1978 na Argentina de Videla, numa ditadura sanguinária que usou a competição a seu favor como Hitler usou as Olimpíadas de Berlim em 1936, é engraçado que este documentário simplesmente passe batido pela compra do time do Peru para que este fosse goleado por 6x0 e garantisse a ida da dona da casa à final, eliminando o Brasil sem que este perdesse uma partida. Há farta documentação e testemunha de jogadores do Peru inclusive. A Copa de 78 foi roubada. E com os sites de apostas movimentando bilhões, desculpem, nada é garantido, do sub-17 à Copa.

Mas então, Túlio, por que raio você vai ver o raio da Copa? Se todos os motivos indicam que não devia? Se todos estes absurdos gigantescos foram cometidos em seu nome? Vou te dizer por quê. Porque eu gosto. Eu gosto de futebol. Esses canalhas, esses filhas da ****, eles não vão me tirar isso. Vou assistir os jogos e ficar com raiva dos patrocinadores em vez de gostar deles. Vou dar a mínima para quem é campeão de fato, nem vou ter certeza se foi limpo.

Mas vou ver porque gosto. Vou ver porque futebol ainda é maior que a vida e Copa do Mundo ainda é a Guerra Mundial que precisa ser travada para, de alguma maneira, assegurar que outras muito maiores não aconteçam e nos levem todos para o Inferno. Vou ver porque um passe de calcanhar, um drible, um lançamento, uma defesa, um cruzamento, uma corta-luz, podem ser sublimes e eu quero vê-los e acho que o mundo precisa deles. Os crápulas, os torpes, os pulhas, os ignóbeis, os miseráveis, os patifes, os ordinários, os infames, os tratantes, os velhacos, os sórdidos querem a todo custo tirar isso de mim, de nós. Não vão conseguir. Venha, Copa. Venha que eu estou pronto.