Na verdade, não sobre o aborto
O aborto é o tema preferido do oportunismo moralista reacionário não é de hoje. Lembro de uma eleição para senador no início dos anos 2000 em que Jandira Feghali liderava, até Francisco Dornelles passar a acusá-la de querer legalizar o aborto. Jandira é médica, e esta é apenas uma entre dezenas de pautas, mas a abordagem dela foi suficiente para o Dornelles ultrapassá-la e se eleger fácil.
Anos depois, na eleição da Dilma, o tema voltou à baila e novamente a estratégia deu certo, de forma ainda mais ardilosa. Dilma tinha votos para vencer no primeiro turno e Serra tinha , seu teto, mas a ascensão de Marina, em terceiro, poderia provocar um segundo turno. Serra então trouxe o tema aborto para a pauta, apoiado em peso por toda a mídia. Deu certo, votos da Dilma foram para Marina (que não os recusou, mas também não provocou o debate), mas como esta não ultrapassou Serra, ele foi ao segundo turno. A tática teria sido mantida se, depois de Mônica, mulher de Serra se exaltar e, tomada de uma ira santa, chamar Dilma de assassina de bebês, uma ex-aluna dela não tivesse vindo a público contar que, em suas aulas, Mônica contava ela própria já ter feito um aborto. Diante disso, como por encanto o tema saiu da pauta da mídia, e Dilma venceu a eleição.
Digo tudo isso para exemplificar como este assunto específico pode ser mobilizador se abordado de forma simplista. E para lembrar que, acuado por um governo desastroso, quase 700 mil mortos de pandemia, mais de 30 milhões de pessoas em insegurança alimentar e escândalos de corrupção se sobrepondo, tudo o que os fascistas podem querer é tentar transformar a eleição num plesbicito sobre o aborto. É algo totalmente irreal? Evidente. A lei do aborto no Brasil é clara há muitos anos e dificilmente vai mudar. Porém, diante de sua derrocada, foi só o que restou a eles alardear.
Por isso a gritaria incrível sobre o caso da menina de 11 anos grávida de um menino de 13. Trata-se de uma situação totalmente anômala, mas que só chegou ao ponto que chegou porque uma juíza se recusou a cumprir a lei e procrastinou para que a gestação se prolongasse o mais possível. Por isso a cartilha editada pelo Ministério da Saúde que diz textualmente, contrariando toda a legislação, que “todo aborto é um crime”. Se depender dos fascistas, o meme “E o Lula? E o PT?” será substituído por “E o aborto?” até outubro. E nada de inflação, nada de combustíveis, nada de pastores se reunindo com Bolsonaro e de Bolsonaro avisando o ex-ministro de uma operação da PF.
E ainda falta mencionar a decisão da Suprema Corte dos EUA. O alinhamento automático e fanático do fascismo tupiniquim aos EUA e em especial o trumpismo, responsável pela mudança, está comemorando, como se a pretensa defesa da vida não fosse a ponta de lança para a proibição de casamentos LGBT+ e até mesmo do uso de anticoncepcionais — não estou brincando, vejam as declarações dos próprios juízes. Só há uma forma de evitar a contaminação da república de Gilead por aqui: tirar do poder nossos próprios fascistas e voltar ao multilateralismo.
E aí já não se trata apenas de aborto, esta é uma questão menor nisso tudo, mero pretexto. Trata-se de colocar esta questão de saúde pública no seu devido lugar, em perspectiva com as centenas de milhares de mortes causadas pelo fascismo, e voltar às pautas que efetivamente estão matando milhares de pessoas ainda agora, pelo desmonte das instituições que as protegem e servem — as de saúde e educação pública em especial. Quando os fascistas gritam aborto!, não querem tratar de aborto, apenas provocar uma histeria coletiva. Tenhamos isso em mente.