Da inversão lógica da Opinião Pública
Há uma lógica insuspeita e bastante perversa na divulgação da pesquisa Datafolha em que uma maioria concorda que Sergio Moro cometeu ilegalidades, e uma (outra?) maioria acha que ainda assim Lula é culpado e deve ficar preso. A lógica, ou falta dela, não está na aparente contradição entre as duas respostas, e sim bem antes, no fato se fazer estas perguntas. Pois a pergunta certa a fazer deveria ser a seguinte: O que raio a Opinião Pública tem a ver com isso?
É claro que é legítimo avaliar como a população está reagindo às revelações da Vaza Jato, e como se comporta diante dos meios de comunicação e suas seletividades. Ocorre que não é disto que se trata quando se faz e divulga uma pesquisa como esta. O que ocorre de fato é uma substituição do Estado de Direito pela opinião, do Império da Lei pelo Império do Ibope. Não se trata de um precedente recém-aberto. Ao contrário, a fresta aberta há muito já se escancarou e naturalizou, e este é o maior perigo.
Não deveria haver nenhuma dúvida de que, quando um juiz comete ilegalidades num processo, o juiz deve ser punido e o processo, anulado. Não deveria depender de nenhuma pesquisa. Acontece que no Brasil, à medida que o judiciário foi se tornando político, passou a usar a Opinião Pública como pretexto para suas próprias interpretações extravagantes da lei, ou no limite, atitudes ilegais. E a Opinião Pública, por sua vez, vai sendo moldada pelos meios de comunicação interessados em direcionar a política nacional.
O processo do Mensalão talvez tenha sido onde este ovo foi chocado. A cobertura implacável da mídia deu cobertura também à utilização da famigerada teoria do Domínio de Fato de uma forma desautorizada pelo próprio autor, de modo a promover uma perseguição política que abarcasse o maior número possível de próceres do partido no poder. O próprio presidente da República à época foi poupado por pouco, pela decisão política de deixá-lo sangrar — que ao se revelar equivocada, não foi cometida duas vezes.
Então veio o processo do Impeachment, e nele cedo se evidenciou que o que menos importava era se havia ou não sido cometido algum crime. O pretexto das pedaladas foi o menos mencionado em todo o processo, a absurda expressão “julgamento político” foi repetida à exaustão e Dilma foi derrubada “pelo conjunto da obra”, à base de um massacre midiático aliado a uma sabotagem política. A “vontade das ruas” foi invocada tanto quanto a família dos parlamentares nas votações do golpe. A opinião medida em pesquisas particulares valia mais que a expressa nas urnas. E então, aí sim, foi aberta a Caixa de Pandora.
A partir daí, valia invocar a vontade popular para o que quer que fosse, desde que bem coberto pelos jornais, revistas e TVs, e Sérgio Moro sabia bem disso. Desde o início de seus estudos da Operação Mãos Limpas ele deu muito atenção a como ela lidava com a divulgação de seus resultados de modo a manter a população sempre a seu favor. Daí a passar a manipular vazamentos seletivos com a cumplicidade e parceria de Globos e Vejas foi um pulo. E com a fidelização do público conquistada, e a demonização do partido a ser perseguido, o céu foi o limite. Moro efetivamente tornou-se um super-herói como seus bonecos infláveis — ele podia tudo e nunca era culpado, bastava responder às acusações com suas palavras mágicas: “Não vem ao caso”, e a Imprensa fazia o resto.
Desta forma, foi forjado o novo paradigma da democracia: a Opinião Pública vale mais que a lei. Pesquisas de opinião serviram de apoio político para a condenação sem provas de um candidato à Presidência com o objetivo indisfarçado de impedi-lo de concorrer — ou seja, valeram mais que as eleições. E mesmo hoje, ao vir a público o segredo de polichinelo da parcialidade e cumplicidade do juiz, dos procuradores, da Midia, de todo mundo que não era a defesa, ainda assim não conseguimos nos livrar deste pensamento desviado e achamos importante uma pesquisa de opinião, mais uma, feita sob medida para substituir a lei, que diante do escândalo, tenta entregar os anéis para salvar os dedos: Ok, o juiz estava errado, mas, bem, mesmo assim estava certo. Que usa as contradições naturais da Opinião Pública, que não é juiz, não é exata, não é coerente nem tem a obrigação de ser, para levar adiante os planos políticos de quem não teve escrúpulos de pisar na cabeça da democracia para ascender ao poder.
Então, da mesma forma que um delegado da Lava Jato uma vez afirmou que era preciso esperar o timing certo para a prisão do Lula, agora ficamos aguardando que a popularidade do governo caia, como se ele já não tivesse cometido crimes o suficiente, e como se não estivesse divulgando calúnias a granel em seus canais oficiais, como se não estivesse claramente impedindo que investigações que podem derrubá-lo aconteçam. Afinal, cadê o Queiroz?
Ao fazermos isto, estamos obedecendo cegamente às regras que nos foram impostas por eles próprios. A ordem democrática do país foi invertida: não é mais o resultado das urnas que define quem estará no poder, seja por derrubada do eleito ou impedindo o favorito de concorrer; e a opinião informal é o pretexto para manter este estado de coisas. Antes de qualquer coisa, se queremos que este governo antidemocrático caia, precisamos reinverter esta lógica antidemocrática. E lembrar que, no fim das contas, a Opinião Pública não são os jornais nem o Datafolha — somos nós.