Carta ao Lima

Túlio Ceci Villaça
4 min readMay 6, 2020

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Oi, Lima. Antes de mais nada, peço desculpas pela intimidade, mas como não tratar como um amigo íntimo quem esteve em minha casa e foi tão bem vindo todas as noites por tantos anos? Em segundo lugar, quero dizer que você é um gigante, e dentro da sua enorme humildade sei que você no fundo sabe disso. Você tem uma obra artística gigantesca, construída bravamente, e minha admiração por você, como de todo brasileiro que se preze, nunca será suficiente.

Digo tudo isso porque o que vou dizer a seguir é duro, e peço desculpas mais uma vez porque sei que vou me alongar, mas acho que não há modo curto de dizer o que vou dizer. Assisti comovido como todos o vídeo em que você conversa com o Flávio. Você diz coisas lindas e terríveis. Relembra o Arena, onde você, Flávio, Paulo José e outros, sob a batuta do Boal, trataram de levar aos palcos o homem brasileiro, e você exulta: “Nós conseguimos!” E conseguiram mesmo, e os frutos do que conseguiram reverberaram por décadas. Só o homem do povo do Flávio em Terra em Transe, desconsertando as crenças utópicas do jornalista vivido pelo Jardel, só este já valia tudo. Mas da sua parte, tivemos Zeca Diabo, Salviano Lisboa, Sinhozinho Malta, Sassá Mutema, tantos, tantos homens brasileiros por excelência, retratos das nossas mazelas e nossas virtudes, contraditórios, terríveis, humanos. É verdade, vocês conseguiram.

Você voltou muito no tempo das lembranças, foi até antes de 1964. Mas eu quis voltar um pouco menos, e lembrei do vídeo que você gravou no dia da eleição de 2018, bem em frente ao Arena. Lá, logo depois de votar, você pergunta a seus antigos companheiros, que pensaram a arte e a cultura brasileiras — Boal, Antônio Cândido, tantos outros — onde foi que vocês erraram para que, o país elegesse um Jair Bolsonaro.

E posso voltar um pouco mais, alguns anos, quando você chamava Lula de imbecil e idiota em entrevistas, e disse que o odiava, porque, segundo você, ele glamourizava a ignorância. Logo ele, que abriu tantas universidades e escolas! Logo ele, que chamou ninguém menos que Gilberto Gil para fazer do-in na cultura do país — Gil e sua sabedoria búdica, que um dia você atribuiu a seu pai numa entrevista que me emocionou às lágrimas. Você contou quando seu pai o expulsou de casa por considerar que você estava pronto para a vida, e você pegou carona num caminhão de mangas e foi para a cidade grande. E tantos anos depois, você dizia que seu pai estava certo e dizia exatamente isto, que ele tinha uma sabedoria búdica.

E lembro também de você dizendo em entrevistas que Dilma devia pedir o boné e ir embora da presidência — uma presidente eleita, sendo derrubada por uma trama de bastidores com um pretexto espúrio. E você recriminando-a, não divergindo, não apontando erros, mas recriminando apenas. E quando Regina Duarte veio a público dizer que tinha medo do PT, e sua neta Paloma rebateu a fala dela, você deu razão a Regina e não a Paloma. A Regina que hoje você reconhece estar perdida em seu puxa-saquismo ao Bolsonaro em quem você não votou.

Eu avisei que seria duro, e volto a pedir desculpas, porque tudo o que eu não quero é devolver recriminações, decididamente não é hora disto. Mas é preciso lembrar para entender. Se eu pergunto onde foi que erramos, a única maneira de ter uma resposta é olhando para trás detalhadamente. E olhando para trás, o que eu vejo e entendo é que tivemos na presidência um típico homem brasileiro, e hoje temos outro. O primeiro, que como você veio da roça, com todas as suas idiossincrasias, mas que você julgou pela capa, sem perceber o que havia nele de mais profundo. Claro que Lula não era o Sassá, ninguém era o Sassá, só mesmo você, e mesmo assim só parcialmente. Mas havia ali um pedaço daquilo que você, Flávio, Boal e os outros haviam construído. Havia um homem brasileiro por excelência no poder. Alguns perceberam. Você, e me dói dizer isso pela admiração que lhe tenho, você não.

E hoje, de certa maneira, temos outro homem brasileiro, mas o seu avesso. Se Lula certamente tinha e tem defeitos, Bolsonaro é a personificação dramática de todas as características negativas do homem brasileiro, sem o seu charme — Zeca Diabo e Sinhozinho Malta multiplicados um pelo outro, digamos. Ele não nos é estranho, você sabe. E se é tão frustrante, depois de mais de 50 anos, ver o país retroceder e o corte terrível que você e seus valorosos amigos sofreram acontecer novamente, sua pergunta se torna ainda mais valiosa: Onde nós erramos? Não você, não Flávio, nós. Como foi que tivemos no cargo mais alto um representante falível e digno do homem que você retratou com tanta maestria, e o trocamos em poucos anos por outro, que guarda apenas suas piores características?

Assim como você, não sei responder, e como tenho pouco mais da metade de sua idade e experiência, me concedo ainda o direito de imaginar que um dia saberemos. Mas de uma coisa sei: que sua obra, aquilo que você fez de tão genial e sublime em toda sua vida, nossos retratos interpretados por você, são no mínimo uma chave importante para entendermos o que aconteceu, porque nos permitem entender quem somos. Eu tenho a opinião que você errou, talvez ao querer da realidade um retrato da ficção, não sei, mas sua grandeza ao perceber o equívoco do caminho tomado é imensa, e de o todo modo você não é menos ou mais humano que ninguém. Já sua obra é, e paira acima de você e de nós. E acho que já estou me repetindo aqui no fim, mas é preciso dizer: nunca seremos suficientemente gratos por ela.

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Túlio Ceci Villaça
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