A fantástica fábrica de narrativas
Neste momento, há uma ofensiva fortíssima de comunicação subterrânea do governo federal. Os relatos de monitoramento de grupos de Whatsapp são de que a coisa está no mesmo nível da eleição, um bombardeio incessante no sentido de isolar completamente da realidade. Mas isto se dá tanto pelo volume quanto pela construção das narrativas que são impingidas. Queria analisar duas delas aqui, dos casos recentes desta semana. Quem tiver paciência, me acompanhe.
Caso 1 — saída da Ford.
A Ford divulgou em nota que saiu do Brasil por três motivos: pandemia, queda das vendas e dólar alto. Claro que há motivos estruturais e o assunto é complexo, mas estes três motivos têm o dedo de Bolsonaro muito claro: a condução desastrosa do combate à pandemia que paralisou a economia levando à queda das vendas (que já vinha de antes, porque a condução da economia por si também é desastrosa), e o dólar que foi prometido baixo desde antes do impeachment, passando pelos delírios de Paulo Guedes.
Aí vem a contra-narrativa: Bolsonaro declara que a saída se deve à sua recusa dele em isentar impostos. Mentira, porque ele baixara os impostos para as montadoras em outubro do ano passado. Mas o discurso ‘a mamata acabou” tem apelo, e ainda por cima moral, pois assim a empresa se torna “traidora” (como se uma empresa tivesse fidelidade a alguma coisa que não seja lucro). Esta narrativa foi a espalhada pelas redes oficiais.
Mas ainda faltam as redes oficiosas. Esta acrescentou o detalhe que faltava: deputados de fake news afirmaram em suas redes que as isenções dadas pela Dilma (lembram do IPI reduzido?) teriam sido negociadas à base de propina, e que a PF está investigando. Está mesmo, à base daquelas denúncias sem provas que são balançadas ao vento por meses até que a absolvição sai numa nota de rodapé e não se fala mais no assunto. Mas era suficiente, a história inteira estava montada, com começo, meio e fim, e culpando o PT ainda por cima. Eu assisti esta narrativa se formar nas redes em três dias, os apoiadores do governo passando da surpresa à culpabilização da Ford e finalmente ganhando segurança para responder mantendo sua alienação.
Caso 2 — Colapso em Manaus.
Este foi um caso mais difícil, mas é o que está gerando a reação mais feroz. A primeira reação dos contagiados pelo fascismo foi se calar. Ontem, 3% do Twitter defendia o governo de alguma forma. Todos aguardavam a ordem unida da contranarrativa.. E ela veio, naturalmente culpando o governo estadual, eleito com o apoio de Bolsonaro.
Novamente, a versão oficial incluiu diretamente Bolsonaro, que tuitou os números dos repasses feitos ao Amazonas e a Manaus. Era um bom argumento, como se o repasse de dinheiro fosse suficiente para o governo federal se livrar da responsabilidade. Mas ainda faltavam elementos. Primeiro, a volta do argumento mentiroso de que o STF proibiu Bolsonaro de agir contra a pandemia, entregando todo o poder aos estados.
E aí o golpe final, lembrando das ações da Polícia Federal no Amazonas, investigando superfaturamento na compra de respiradores. Pronto, temos todos os elementos: Bolsonaro não podia fazer nada, mandou o dinheiro e este foi roubado, e o resultado está aí. E hoje esta narrativa está bombando como nunca, não só nas redes sociais visíveis, mas principalmente, com toda a força, nas invisíveis. Permite até um complemento quase heroico, dos aviões das Forças armadas levando oxigênio para Manaus e doentes para outros estados (só os leves, porque não não têm aviões com UTI). E finalmente, mais um decola para a Índia pegar dois milhões de vacinas! Heróis!
(Ah, e faltou a Cloroquina. As redes estão inundadas de defesas da cloroquina.)
Bem, as vacinas ainda não estavam compradas da Índia. Espero que cheguem com elas. Mas assim foi construída uma história capaz de se contrapor à realidade, por sua coerência interna, e capaz de fazer esquecer as dúzias de desmandos e sabotagens do Bolsonaro desde março do ano passado.
Pode parecer incrível, e é. A capacidade de o ser humano se isolar da realidade numa narrativa que o satisfaça e o mantenha na zona de conforto de seus preconceitos é muito elástica, e a situação atual do mundo está demostrando mais uma vez. Meu objetivo neste texto é apenas demostrar a coordenação por trás disto. Porque mesmo para ser louco é preciso método, já dizia o Shakespeare. E para enlouquecer os outros, mais ainda. Estes são dois exemplos acabados da fantástica fábrica de narrativas do fascismo tupiniquim. Neste dias ela mostrou que está longe de estar morta, e continua sendo absolutamente necessário cortar os fios que a mantém funcionando. Tirar seu oxigênio, por assim dizer, antes que ela tire o nosso.