20 centavos sobre Junho/13

Túlio Ceci Villaça
6 min readJun 8, 2023

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Há duas, humpf, narrativas sobre Junho/13 que vão se tornando hegemônicas pela repetição sem que haja nenhuma comprovação factual, uma sobre suas causas e outra sobre suas consequências. A primeira afirma que Junho/13 foi patrocinado por forças exógenas, internacionais. A segunda afirma que Junho/13 foi o ovo da serpente e a causa tanto do golpe que derrubou Dilma quando da ascensão do fascismo no Brasil.

Antes de tudo, é preciso lembrar que Junho/13 não foi um fenômeno uniforme e estanque, nem em termos temporais nem territoriais. Então, quem foi a uma manifestação não viu nem um décimo do que aconteceu, ou mesmo quem foi a várias. Ao longo do mês e conforme as manifestações foram se espraiando, elas foram mudando, e muito rapidamente. Este é um dos motivos por que é tão difícil analisá-las. Outro motivo são os interesses políticos por trás de quem faz as análises.

Então, vamos tentar traçar uma cronologia básica. As coisas começam com o Movimento Passe Livre na rua, atravancando o trânsito e tendo a antipatia da população, em manifestações miúdas. Até que a polícia vem e baixa o cacete neles. E, incrivelmente, como não acontece quando são pretos ou professores apanhando, a população fica ao lado deles.

Então as manifestações seguintes incham desmesuradamente, a princípio protestando contra a violência policial e a favor da redução da tarifa, mas em seguida (e muito rapidamente, repito) trazendo uma plêiade de outras reivindicações, cada vez mais vagas e plurais, até mesmo contraditórias — é a fase do “não são só os 20 centavos”. A imprensa, a princípio contrária, logo percebe que a onda que se forma é grande demais e muda de lado (o pedido de desculpas do Jabor no telejornal sendo o exemplo máximo disso). Partidos (principalmente de esquerda), chegando atrasados, tentam também se incorporar às manifestações e são rechaçados duramente.

E então a onda chega a seu máximo com manifestações gigantescas em que já não é possível perceber com clareza um denominador comum. A partir daí a própria imprensa começa a tentar pautar as reivindicações, como na não aprovação de um PL que limitava os poderes do Ministério Público (e que não passou mesmo). Mas nesta fase as passeatas deixam de ser por alguma causa e se tornam como que um fim em si mesmas, as pessoas celebram e cobram o direito de celebrarem e cobrarem o direito de etc. Neste ponto, pessoas entrevistadas nas manifestações não sabiam dizer o motivo de estarem ali. E a partir daí a onda se desmancha aos poucos.

Estes são alguns fatos. Agora vêm as minhas interpretações. A primeira é que… bem, não eram mesmo os 20 centavos, embora eles tenham uma simbologia. Uma parte da esquerda à época interpretou assim: o povo, depois da bonança da era Lula, agora cobrava melhores serviços públicos — transporte, educação, saúde, segurança. Não deixava de fazer sentido. Mas estava longe de ser tudo.

Mas havia sim uma frase que unificava praticamente todos que estavam nas ruas naquele mês, uma frase muito incômoda para a democracia. Era “XXX Não me representa”. Havia ali uma busca de ser ouvido, seja para dizer o que fosse, algum canal direto com o poder. A reprovação da falta de representatividade recaiu, obviamente, em quem estava no no poder. Mas não era este seu alvo, e sim a própria representação. Em suma, Junho/13 foi o momento em que o sistema de representação brasileiro da Nova República começou a ruir.

Neste momento pululam artigos apontando como o presidencialismo de coalisão acabou e é preciso encontrar outra solução. Ora, foi em Junho/13 que ele começou a acabar, quando as pessoas na rua disseram em alta voz que não se sentiam representadas por um sistema em que Bolsonaro era da base de sustentação do governo do PT — e era.

Se Junho/13 foi o início de alguma coisa, não foi da ascensão da direita — ela estava na rua também, mas sua voz não se distinguia das demais. Mas foi, sim, a denúncia de um sistema precário de sustentação política que só poderia funcionar à base de fisiologismo e corrupção, como ficou evidente nos anos seguintes — afinal, Dilma foi derrubada por não compactuar com ela.

E sim, o discurso anti-junho chamado por Marcos Nobre de doença infantil do PT é e foi duplamente nocivo ao PT. Menos por não entender o que acontecia — na época, ninguém estava entendendo — e mais por, depois de uma primeira reação chamando ao diálogo, passar a crescentemente rechaçar as manifestações como uma espécie de quinta coluna, a despeito das centenas de milhares de pessoas que as compuseram, incluindo de esquerda.

Não foi o MPL ter se retirado das manifestações que as jogou no colo da direita, porque nada o fez, elas começaram e terminaram no mês de julho ainda sem uma proposição definida, como um imenso desabafo já feito. Elas só foram retomadas, aí já com pautas de direita, um ou dois anos depois, servindo de alimentação para o golpe. Claro que eram um rebranding de junho/13. Mas é espantoso para mim que a esquerda, na ânsia de defender a Dilma, tenha aceito este rebranding e passado a amaldiçoar Junho/13 retroativamente, como se fossem passeatas contra o PT. Nunca foram.

Se Junho/13 teve como característica ir contra as instituições e a política partidária, é porque havia (e há) um descompasso entre estas duas e a população — alguém duvida disso? Isto não significa que as coisas se resolvam fora das instituições e da política partidária, mas deveria ter servido para apontar estes descompassos. Em vez disso, a mensagem foi perdida porque quem poderia tê-la ouvido tornou-se refratário a ela, e muitos seguem até hoje. Enquanto isso, o sistema de representação brasileiro segue fraturado e precisando urgentemente de uma nova fórmula — e alguns defensores do atual governo seguem culpando o mensageiro de 10 anos atrás.

Logo depois da cerimônia de posse do Lula, com a subida de rampa que emocionou o país, eu afirmei que aquela era a melhor resposta que se podia dar a Junho/13 — um choque de representatividade. Mantenho, embora saiba que tornar efetiva a simbologia daquele gesto é exatamente o que este governo tem a maior dificuldade em fazer, já que todo o sistema de representação se move no sentido de impedi-lo. Lula ora demonstra uma compreensão imensa disto, ora parece se voltar a formas arcaicas que já deram muito errado (refiro-me à intenção de isentar impostos de templos religiosos). Ele segue numa corda bamba.

E por isso mesmo, a parte da militância do PT que segue com as acusações a Junho/13 presta na verdade um desserviço ao partido e ao governo. Que houve influência externa no golpe sobre a Dilma me parece evidente (a embaixadora dos EUA no Brasil na época era a mesma que estava no Paraguai e em Honduras quando estes governos sofreram golpes parlamentares semelhantes). Mas isso em 2016, no Congresso. Já a pretensa influência sobre o Junho/13 permanece sem nenhum indício real e me soa como dizer que é possível direcionar um furacão ou interromper a subida da maré.

E quanto às consequências… convenhamos, é preciso um tanto de reducionismo histórico para afirmar que um mês de manifestações, que além de tudo se encerraram sozinhas, tenham causado tudo o que ocorreu no país nos 10 anos seguintes. Aliás, eu fico imaginando as mesmas pessoas da esquerda institucional de hoje afirmando que os protestos franceses em maio de 1968 era na verdade retrógados e motivados por forças externas como a CIA — e eles também foram seguidos por uma guinada à direita na política, e no entanto se tornaram uma força que impulsionou o pensamento ocidental.

Então, finalmente: não condeno Junho/13 ao fogo eterno, e não o considero o redentor da democracia brasileira. Mas tento da a ele o lugar histórico que merece — ele apontou que havia algo muito errado, e muitos preferiram não escutar, o que nos levou a um período de trevas que, espero, esteja terminado definitivamente, se finalmente soubermos escutar o que nós mesmos dissemos.

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